Em 2013, o escritor e diretor de cinema israelense Ari Folman contabilizava em seu currículo um impactante primeiro filme, uma animação chamada Valsa com Bashir, indicada em 2009 para várias premiações internacionais, incluindo o Oscar, o Bafta e o César – neste último, o filme foi premiado na categoria internacional. Valsa com Bashir era uma adaptação em cinema de uma história em quadrinhos roteirizada por Folman e ilustrada por seu parceiro recorrente David Polonsky. No álbum, Folman exorciza o trauma pessoal de ter sido soldado do exército israelense durante o verão de 1982, quando as forças assim chamadas de defesa de Israel ocupavam o Sul do Líbano e ainda assim permitiram o massacre de milhares de refugiados civis palestinos nos campos de Sabra e Chatila, perpetrados por uma milícia cristã de extrema-direita que pretendia vingar a morte do presidente libanês idem Bashir Gemayel (está aí a razão do título da obra de Folman). Israel nega até hoje que tenha havido uma combinação prévia entre os libaneses cristãos e as forças de ocupação, mas o fato é que o exército israelense foi usado como força auxiliar do massacre, tendo inclusive fechado as saídas do campo para impedir a fuga dos refugiados, ao mesmo tempo em que se recusava a entrar para deter os perpetradores do massacre.
Valsa com Bashir é um híbrido interessante de documentário e ficção, uma vez que seu caráter animado claramente o afasta do documental, mas a trama segue a experiência do próprio autor, assombrado décadas depois por sonhos confusos envolvendo seu período na guerra. É ao refletir sobre esses sonhos que Folman se dá conta de que não se lembra de mais nada de sua participação nos conflitos daqueles dias. Ele decide procurar ex-colegas de pelotão para reconstruir suas memórias do período, e o que vai despertando ao longo de sua investigação é a experiência da guerra como uma grande viagem psicodélica em que pesadelos e acontecimentos reais se confundem – essa metáfora é textualmente usada por um dos personagens e traduzida nos tons e cores intensos da animação e da arte dos quadrinhos. Imagino que a memória de um palestino sobrevivente do mesmo período estivesse mais para alguma representação medieval do horror do que para qualquer psicodelia, mas aí teríamos outro não, não este, e sendo este o filme que temos, ele é muito bom mesmo assim.
Como eu dizia: Valsa com Bashir é uma obra impressionante e muito bem realizada, e o filme teve uma carreira internacional consagrada, o que tornou possível a Ari Folman viabilizar poucos anos depois, em 2013, um outro longa-metragem ainda mais ambicioso, falado em inglês, com elenco americano estelar e que misturava animação e filmagens “live-action”, como dizem. O resultado, o filme O Congresso Futurista é muito menos bem-realizado do que Valsa… – na prática, o que temos ali é uma mistura algo desconjuntada entre dois filmes que, pela própria intenção do projeto, deveriam ter convivido de modo mais orgânico. Mas uma coisa não se pode tirar de Folman e de seu filme. Sua presciência.
Previsões
Ao contrário das chamadas “previsões dos Simpsons”, meme recorrente segundo o qual a animação de Matt Groening previu inadvertidamente com suas sátiras absurdas muito da vida real, me parece que a presciência de Folman em seu filme é mais deliberada. Atento ao que já se discutia nos subterrâneos da tecnologia, Folman antecipou em seu filme pouco visto e hoje pouco comentado muito do que andamos discutindo desde o ano passado com a emergência das ferramentas comerciais de criação de imagens e de som por inteligência artificial.
O Congresso Futurista é, “em tese”, uma adaptação do livro de mesmo nome escrito por Stanislaw Lem, o mesmo autor de Solaris, romance que inspirou um filme clássico de Andrei Tarkovski e uma refilmagem americana da qual eu me recuso a falar (vocês também deveriam). Mas é uma adaptação bastante livre, ao ponto de que a maior parte do filme não tem nada a ver com a história do livro. No romance de Lem – que já foi traduzido para o português como O Incrível Congresso de Futurologia, O Congresso Futurista, O Congresso Futurológico, entre outros –, um personagem recorrente do escritor, o explorador e cientista Ijon Tichy, é enviado para o tal “congresso”, em um hotel de luxo em um país sul-americano, para discutir como serão as condições sociais e materiais do futuro. Após um acidente, Tichy cai num coma do qual só acorda décadas depois, no ano de 2039 (logo ali, para nós leitores contemporâneos). O tom de sátira que Lem impõe ao livro – dirigida diretamente às lideranças internacionais comunistas da época em que a obra foi publicada, 1971 – se baseia principalmente no fato de que, ao acordar no futuro de fato, Tichy é levado a perceber o quanto todos os prognósticos, tendências, cenários e estimativas elaborados pelos luminares que ele conheceu no congresso eram completamente furados, e como o futuro real é diferente do imaginado, e um tanto mais inverossímil e brutal.
Considerando o quanto a sátira do livro está enraizada numa crítica nem tão velada assim ao comunismo, fazem total sentido as alterações imprimidas por Folman no seu filme. Na primeira parte, toda filmada em “live-action”, ou seja, com atores e não com desenhos, Robin Wright interpreta uma atriz que divide com ela própria o nome e parte de seu currículo artístico. Assim como a atriz “real”, a sua versão no filme estrelou em várias produções de sucesso, como A Princesa Prometida e Forrest Gump – porém, sua mania de “escolher demais” os papéis que aceita e sua “fama de difícil” estão há anos mantendo-a afastada de novas propostas. Como Robin na narrativa tem um filho diagnosticado com a Síndrome de Usher, enfermidade rara que afeta simultaneamente olhos e ouvidos, levando simultaneamente à cegueira e à surdez, e como seus recursos para o tratamento estão escasseando, Robin aceita o que poderia ser chamado de “uma proposta indecente”.
A atriz concorda em ter seu corpo e seu rosto escaneado pelo estúdio “Miramount” (contração da então marca consagrada do cinema “independente” Miramax com a histórica e tradicional gigante “Paramount”) para a criação de um dublê digital a ser utilizado pela indústria em filmes futuros – sejam os que a atriz teria escolhido fazer ou não. Um indicativo de como o resultado é a perda de qualquer escolha sobre uso de sua imagem pode ser visto quando, após a narrativa dar um pulo de 20 anos, Robin vê a si mesma em um outdoor anunciando uma série de filmes de ação na qual sua “versão animada digitalmente” vive uma andróide rebelde em uma saga espacial genérica do tipo da que o Zack Snyder lançou ano passado com Rebel Moon (a própria palavra Rebel, aliás, consta do título dos filmes que Robin agora faz sem saber: Rebel Robot Robin). Nesse salto de vinte anos após a decisão, Robin é convocada para comparecer ao tal “congresso” do título – não mais um simpósio de ideias futuristas, como no livro de Lem, mas um evento de auto congraçamento corporativo, mais ao gosto do tempo.
Questões
Robin se tornou o exemplo mais bem-sucedido do uso da tecnologia de “digitalização de astros”, a ponto de ser o símbolo da mudança implacável ocorrida na indústria do cinema (o que justifica sua presença no Congresso). A partir de um determinado ponto, ao entrar no espaço fortemente vigiado da empresa (hoje uma gigante monopolista que não só comanda o mercado mas também parece ter propriedade de grandes territórios e seu próprio exército), Robin deve ingerir uma droga alucinógena que a transforma “numa animação” ela própria, e a partir daí o filme assume suas características animadas. Robin passeia pelo tal congresso no qual todos os convidados podem ser vistos como figuras de desenhos animados (com forte e voluntária inspiração no trabalho de um pioneiro do gênero, Max Fleischer). Ao encontrar o mesmo executivo calhorda que comprou sua “imagem” 20 anos antes, Robin é informada de que a indústria está a um passo de uma nova mudança.
Com a evolução da tecnologia permitindo que as pessoas possam ser uma animação, em vez de ver, “filmes se tornaram obsoletos”, declara o executivo. As implicações dessa mudança não passam despercebidas a Robin, dado que agora, pelo que se vê nos salões amplos do Congresso, qualquer um pode não apenas ser Robin Wright como fazer basicamente o que quiser com ela – inclusive pornografia.
Na época de lançamento de O Congresso Futurista, 2013, já era uma realidade a técnica de “mo-cap”, ou captura de movimento, laboriosamente desenvolvida desde o início dos anos 2000, mas a criação de um clone digital que pudesse ser utilizado ad aeternum por estúdios de cinema para recriar atores ainda era apenas uma projeção teórica com laivos de ficção científica. Embora houvesse já alguns sinais dessa possibilidade em comerciais que haviam exumado artistas mortos para vender produtos, como Gene Kelly retorcido em uma propaganda de carro, Audrey Hepburn vendendo um chocolate com nome de sabonete e Bruce Lee fazendo propaganda de uísque (eu falei já mais desse assunto, com exemplos, neste texto, no qual eu já tangenciava alguns dos mesmos temas deste artigo. Não me considerem repetitivo quando é o mundo que está indo numa direção inevitável).
O Congresso Futurista, no fim das contas, não tinha a coesão e a força de Valsa com Bashir, e em seu conjunto resultou algo desconjuntado, há dois filmes brigando por espaço dentro da mesma obra. Pode ser essa uma das explicações para o relativo fracasso comercial da produção em seu lançamento. Não só não lotou cinemas como não parecia ter deixado uma impressão duradoura na consciência do público – o que talvez também justifique porque Folman passou os quase 10 anos seguintes sem fazer um filme, e quando finalmente o realizou, foi uma nova versão cinematográfica de uma HQ que ele publicou com Polonsky, mas desta vez sobre O Diário de Anne Frank, incluindo as partes anteriormente censuradas pelo pai da jovem na publicação do original.
Ética e realidade
Corta, no entanto, para uma década depois e os temas que eram esboçados em O Congresso Futurista, o filme, foram no ano passado a pauta central da primeira greve conjunta de artistas e de roteiristas em mais de 50 anos na maior indústria do cinema internacional. Na prática, roteirista queriam algumas garantias de controle de uso de ferramentas de inteligência artificial para reescrita ou mesmo produção de roteiros – artifício que executivos de cinema com salário na casa dos seis dígitos adorariam usar para cortar o custo inconveniente de pagar um escritor. Atores queriam, por sua vez, garantir de algum modo que “dublês digitais” de si próprios não viessem a ser utilizados para sempre por corporações monopolistas que já ganham quaquilhões com “franquias” de entretenimento em que a criação claramente parece dispensar qualquer interferência de criatividade humana.
Embora essa seja uma discussão trabalhista e tecnológica, a chegada recente ao mercado de aplicativos comerciais cada vez mais avançados vendendo a possibilidade de criação de imagens (estáticas ou em movimento), áudios, sons, também tem seus contornos éticos ainda não muito bem definidos e, aparentemente, a própria discussão do tema parece refém do aspecto econômico.
Pouco depois da estreia de O Congresso Futurista, tornaram-se mais presentes na consciência pública as ferramentas apelidadas de “deepfakes“, nas quais usos da imagem e da voz de pessoas públicas tinham intenções claramente danosas. Vídeos de políticos como Barack Obama dizendo coisas que nunca disseram. Cenas pornográficas nunca gravadas por atrizes famosas, como Gal Gadot ou Amy Adams. Fotos antigas inexistentes ou alteradas para apagar ou inserir elementos que não estavam ali.
Discute-se a legalidade de algumas dessas ferramentas, mas não o quanto a sua própria existência já representa um risco de ampliação de um problema que já era sério: a corrosão da realidade, ou ao menos da capacidade de um ser humano comum reconhecê-la.
Estamos, em suma, em uma marcha acelerada para um tempo em que nem uma imagem nem mil palavras valerão mais do que um clique no computador.
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Foto da Capa: Reprodução