*Publicado em 06/06/2024
“Não me vejo torturando uma arvorezinha que não me fez nada.”
Francis Halle, A vida das árvores
Com a enchente, é lugar comum afirmar que “é preciso educar” as novas gerações para o problema do caos climático. Mas exatamente como é que se faz isso? Em minha vida pessoal como educador, uma das tarefas mais difíceis era a de convencer alunos das escolas privadas (mas também alguns das escolas públicas) a se conduzirem de acordo com princípios pedagógicos que se pautem pela defesa da democracia, a solidariedade, a defesa dos direitos humanos e a crítica ao caráter explorador do capitalismo. Este último conteúdo de ensino é essencial para a construção de uma visão de defesa do meio natural sem a qual não será possível combater as condições que agudizam o caos climático.
Criticar o capitalismo e assumir uma posição crítica às políticas neoliberais, exatamente as que criam condições para o caos climático, é extremamente difícil para os professores. Uma das razões é o estrago produzido pelo bolsonarismo, pela extrema direita na juventude: com a ascensão de Jair Bolsonaro ao poder, foi implementada uma série de práticas que tiveram o objetivo claro de destruir as políticas públicas críticas de educação, como demonstrou Fernando Luiz Abrucio, em Governo Bolsonaro: retrocesso democrático e degradação política (Editora Autêntica, 2021). “Sua proposta para a educação tem como objetivo destruir a agenda, o modelo institucional e a comunidade epistêmica construídos nas últimas décadas” diz.
Essa estratégia envolveu definir a escola como um lugar básico de recrutamento de direita. Graças ao ideal bolsonarista, vimos emergir posturas autoritárias de alunos nas escolas de norte a sul do país. A visão ideológica dos estudantes começou a prevalecer nos conteúdos de ensino de seus professores, que tiveram sua subjetividade violada. Falar de direitos das classes trabalhadoras tornou-se um crime, criticar a exploração capitalista, um atentado aos ideais liberais. Professores de esquerda de escolas particulares foram perseguidos e demitidos.
A desigualdade social baseada na justificativa do mérito ocultava o fato de que a luta de classes havia chegado à escola. Sempre houve professores de direita e de esquerda e o debate em sala de aula encarregava-se de resolver as diferenças. Como ensina o bom professor? No campo da análise social, apresenta os argumentos a favor e contra para o aluno tomar uma posição. Ele explicita sua posição, mas o faz num contexto de ensino. Por quê? Porque é impossível uma ciência pura ou neutra, todos possuímos condicionamentos, crenças, valores que fazem parte de nós e tudo que podemos fazer é explicitá-los, como já demonstrou o cientista Hilton Japiassu em seu clássico O mito da neutralidade científica (Imago, 1975).
Depois do bolsonarismo, o debate em sala de aula desapareceu, substituído pelo medo da demissão por parte dos professores de esquerda, enquanto que os de direita foram incentivados a aderir ainda mais ao ideário liberal. No sistema público, reformas incluíram disciplinas de empreendedorismo, como se o universo do capital e seus valores fosse o único possível. A diferença estava entre defender a acomodação ao sistema ou a conscientização do conflito capital x trabalho, em maior ou menor nível. Mas esse conteúdo de ensino era perigoso, pois professores de esquerda encontravam-se frente a frente com alunos de direita.
Mesmo em escolas públicas, com alunos das classes populares, era possível perceber o papel da ideologia. O aluno de direita vinha formado de casa: com pais bolsonaristas, com a defesa do ideal neoliberal, do consumismo, do individualismo, esses jovens levaram para dentro da sala de aula a luta que se desenvolvia fora dela. É o que fala o sociólogo Pierre Bourdieu & Jean Claude Passeron, no clássico A reprodução: elementos para uma teoria dos sistemas de ensino (Vozes, 2014), que afirma que a escola é vista em sua função de conformar o indivíduo ao mundo social, reproduzindo sua própria estrutura. Numa sociedade baseada na exploração, ela colabora na reprodução deste sistema. Mas se é este sistema que está na base do caos climático?
Por isso os professores que criticam o sistema capitalista, especialmente nas escolas particulares, sentiam-se derrotados: demissões injustas, críticas bizarras e filmagens ilegais mostravam que a escola deixou de ser um lugar da liberdade de pensamento, defesa da democracia, de ideais de solidariedade e defesa da causa ambiental. Ela se tornou mais um front de batalha do neoliberalismo como demonstrou Christian Laval em “A Escola não é uma empresa: o neoliberalismo em ataque ao ensino público” (Editora Planta, 2004). Este ataque, na interpretação de Laval, ocorre porque a escola é vista como produtora de “capital humano” necessário às empresas. Ele influencia conteúdos, procedimentos e relações de poder dentro da escola para fazer com que os alunos acreditem nos dogmas do mercado. A educação é uma construção histórica, e por isso, à mercê das lutas e das forças políticas que influenciam a alfabetização política.
Nesse mundo, lares neoliberais criam crianças neoliberais. Lares populares sob influência da ideologia neoliberal também. Quando as políticas neoliberais atingem a rede escolar, a consequência é uma catástrofe. Para ambos, alunos e sua família, é necessária uma reeducação política, e uma das maiores dificuldades que sentem os educadores críticos é enfrentar o vocabulário neoliberal já presente no discurso de pais e alunos que, em nome de princípios neoliberais de educação, em nome da liberdade individual, em nome dos dogmas de mercado internalizados, numa palavra, ideologia neoliberal, alegam que o mundo deve ser exatamente o que está aí e cabe apenas a nós aperfeiçoa-lo.
Por isso é que os professores devem também retomar seu projeto de uma sociedade melhor através da educação e, ainda que seja um difícil caminho, buscar argumentos que possam convencer as novas gerações de crianças… neoliberais!.. de que o neoliberalismo que está aí é um erro, que suas premissas são enganadoras. Isto é válido em vários contextos, mas vale principalmente no atual contexto da tragédia das enchentes que acometem o solo gaúcho. Se não responsabilizarmos os governantes neoliberais que foram responsáveis pela agudização da tragédia, se não levarmos conteúdos de ensino sobre crise ambienta para sala de aula, não ensinaremos as gerações futuras a enfrentar políticas e políticos neoliberais do futuro. E eles estarão à espreita para voltar.
Por isso resolvi escrever para as crianças neoliberais. Escrever temas sérios para jovens não é novo. Tem precedentes no “A política explicada aos nossos filhos”, de Myriam Revault d’Allones, e “O inconsciente explicado ao meu neto”, de Elisabeth Roudinesco (ambos publicados pela Editora Unesp). Ambos tentam simplificar questões sérias, tentam falar a linguagem das crianças e dos adolescentes para falar sobre coisas determinantes em nossa vida, falar sobre coisas que exigem uma tomada de posição. Para isso, o método é sempre o das perguntas e respostas, a forma do diálogo com uma criança, que assumo aqui.
Entendo que para formar crianças que reusem o ideário neoliberal, crianças que no futuro não se deixem transformar em mão de obra explorada pelo mercado, crianças que defendam a vida, o próximo, a solidariedade, a dignidade do trabalho e o meio ambiente e não sua exploração, proponho que se comece com um diálogo sobre algo muito simples e muito próximo de qualquer criança e adolescente e cuja proteção futura pode ter uma influência expressiva sobre o caos climático. Estou falando de uma fala sobre as árvores. Aqui, a fonte de minha pesquisa é a obra de Francis Halle, “A vida das árvores” (Editora Olhares, 2022), que recomendo. Vejamos como seria uma fala assim. Nesse diálogo imaginário, eu, Jorge Barcellos, sou JB, e meu aluno (imaginário) é M. Júnior. Em uma aula sobre meio ambiente, em um ponto qualquer, uma discussão poderia iniciar assim:
Júnior – Meu pai fica criticando os caranguejos, aqueles que dão para trás para os projetos dele. Ele acha que, se é para construir um grande prédio que vai beneficiar as pessoas, não tem problema derrubar árvores. Por que isso é errado?
J.B. – Porque árvores são mais importantes que prédios, M. Júnior. Tem um botânico chamado François Halle que conta uma história que se passou com ele em um avião em Teerã. Ao lado dele sentou-se um homem que lhe disse algo que jamais esqueceu: “Seja qual for sua profissão, em algum momento você vai se perguntar se não está perdendo tempo, ou até mesmo causando algum mal. Seja você comerciante, arcebispo, pescador, músico ou médico”. Serve também para seu pai que quer fazer prédios por todo o lado. Ele disse que a gente, cedo ou tarde terá a impressão de que está perdendo tempo. Só existe uma exceção: se você planta arvores, tem a certeza de que está fazendo algo de bom”. Então, M. Júnior, as árvores são sim muito importantes na nossa vida, preservar as árvores sempre é algo bom, mais que os prédios e o melhor é que elas são autônomas, só pedem que as deixem em paz. Mas nós não as deixamos. Olha lá junto ao Parque Jaime Sirotsky, que está sendo administrado por uma parceria com a prefeitura. Derrubaram um monte de árvores sem necessidade. Teve um monte de “caranguejos” dando contra. E o que tivemos tempos depois? Uma grande enchente. As árvores só nos pedem que as deixemos em seu lugar, que deixemos elas em seu solo. Elas são caladas, são discretas, não dizem nada quando as removemos, não reclamam. Os únicos que reclamam quando elas são retiradas são os ecologistas. Por isso são chamados de eco chatos. Eles são chamados assim apenas por aqueles que tem seus interesses capitalistas contrariados. Mas eles não são nada disso.
Júnior – Há, entendi. As árvores não falam. Então o meu pai está sozinho falando mal das árvores, é isso?
JB. – Mais ou menos. Para as árvores, o silêncio nunca é uma boa estratégia, muito menos de sobrevivência. Isso é já outra grande lição que as árvores nos dão: pessoas que tem problemas não devem ficar silenciosas, devem falar, procurar autoridades, tentar resolver seus problemas. Mas é algo geral não valorizar as árvores. Nos acostumamos a não dar valor as árvores porque muitos antes de nós outras pessoas também não as valorizaram. Ao longo do tempo, muitas vezes foram desprezadas. O ex-presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, o ator – já ouviu falar? – teria dito que quem viu uma sequóia, viu todas; teve um escritor chamado Samuel Beckett, que escreveu a peça famosa Esperando Godot onde o personagem Estragon diz que “uma árvore não serve para nada, a não ser para se enforcar”. Isso é chato sim, mas está errado. O que vale apena é que o número de pessoas que falaram bem das árvores é muito maior, é claro. O filósofo Voltaire dizia a seus amigos, quando recolhido em Ferney, que não fazia outra coisa senão plantar árvores, e dizia “sei que estou velho demais para tirar proveito de seus frutos ou de sua sombra, mas não vejo maneira melhor de pensar no futuro”; o escritor Francis Ponge teria dito que “os animais correspondem ao oral; as plantas, ao escrito”, tentando sugerir que os animais, ainda que nos encantem, se locomovem e podem partir, ao contrário da árvore que, por ser fixa no solo, podemos contar com ela sempre. É algo fixo como a escrita, você sabe. O poeta Paul Valery disse uma vez “a árvore mostra seu tempo” pelos anéis inscritos em seu caule e isso é o torna para nós a passagem do tempo visível. Não é bonita essa visão? O que dá um imenso arrependimento quando vemos, com a exploração das florestas, principalmente a amazônica, árvores centenárias sendo derrubadas. Elas são, como dizem os indígenas, a alma da floresta. Finalmente, teria dito o ativista Nelson Mandela, que cultivava árvores, verduras e legumes na prisão “Eu estou preso, mas minhas plantas são livres”.
Júnior – Agora eu entendi. Mas você falou das enchentes. Então não deveremos derrubar árvores para evitar chuvas, é isso?
J . B. – Mais ou menos. Não há razão alguma para derrubarmos árvores e muitas para as preservarmos. Mas nós precisamos também das chuvas. Você precisa entender duas coisas. A primeira é que as árvores necessitam de muito pouco e nos dão muito. Precisam de água, luz, minerais e gás carbônico, e é este último o verdadeiro poluente, que está matando o mundo aos poucos e produzindo o nosso caos climático. Diz Halle que “esse gás de efeito estufa é extremamente abundante e, em grande parte, o responsável pelo aquecimento global e por todas as mudanças climáticas associadas a ele”. Por isso é preciso entender que as enchentes de Porto Alegre também estão relacionadas a isso, ao modo como preservamos ou derrubamos nossas florestas. Se as preservamos, menor o efeito estufa, menores as enchentes; se as derrubamos, maior o efeito estufa, maior possibilidade de enchente. Se preservamos as várzeas, menos efeitos sentimos das cheias; se não as preservamos, se as loteamos, fazendo conjuntos habitacionais para obter lucro, nós tiramos o espaço de drenagem das cheias. Quando olhamos o que nossos maus políticos e maus empresários da construção civil fazem em nome de interesses do mercado, incentivado e incentivando políticas neoliberais, só pensando nos interesses do capital, mais caminhamos na direção contrária a criação das condições de vida. O neoliberalismo, para resumir para você, é uma forma de organização das políticas que faz com que o dinheiro venha antes do cuidado. Então você tem governos que ora se preocupam com os interesses das pessoas, e hora se preocupam com os interesses do mercado. Quando os governos se preocupam com as pessoas, eles também se preocupam com as árvores pois sem elas, ficamos sem ar. Mas quando governos se preocupam com o mercado, eles só se preocupam em dar facilidades para ele tirar lucro da floresta. Foi o caso do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, que liberou o quanto pode a legislação para explorar a floresta. Em seu período houve grande devastação da Amazônia. É o mesmo que fez o governo de Eduardo Leite, que flexibilizou a legislação de proteção ambiental e isso facilita a derrubada de florestas. Agora, recentemente, senadores aprovaram a liberação dos terrenos da marinha, aqueles junto a praia e que tem também florestas. Se for aprovado na Câmara, o estrago será grande. Hoje você não pode votar, mas quando você chegar aos 16 anos, já poderá. Então eu espero que você tome uma decisão com sabedoria, pesquise o que pensam sobre natureza e caos ambiental os candidatos, o que fizeram ou deixaram de fazer em benefício do meio ambiente.
Júnior – Entendi que votar bem é importante e que precisamos de água e de chuva também. Mas ainda não entendi porque foram tão graves as enchentes que tivemos. Porquê?
J.B. – Primeiro, com as enchentes, faltou água na cidade. Veio o desespero. Por quê? Nós temos um sistema de proteção das cidades muito bem feito, muito bem planejado, com diques para evitar a água, casas de bombas para retirá-la se encher. O problema é que as bombas são como uma Ferrari, como disse alguém na internet. É um baita carro, mas precisa de manutenção, senão não funciona. Foi o que aconteceu. O prefeito recebeu alertas de que poderia ocorrer uma cheia, que precisava fazer reparos no sistema de proteção, mas não deu ouvidos. Ele é neoliberal, ele defende estado mínimo, privatização, essas coisas. Não fez concurso para o DMAE, deixou no banco dinheiro que podia ter sido aplicado no sistema de proteção. Aí as bombas não funcionaram e não empurraram água para as estações de tratamento ou para fora da cidade. Outro papel importante das árvores é a regulação das chuvas. Ela envia toneladas de vapor d’água para atmosfera. Cada uma delas também emite moléculas voláteis enquanto faz isso e que cumprem um papel na chuva, ajudam a chover “não basta a presença de vapor d’água na atmosfera para chover. São necessárias sementes em torno das quais se aglomerem cada vez mais moléculas de água, para que acabem formando uma gota d’agua que caia.” Diz Hale, é claro, que a poeira atmosférica ajuda, mas olha só, ela não existe na floresta amazônica. É aí que entram os VOC (Volatile Organic Compound), as sementes que ele fala, que são moléculas orgânicas. É isso que controla o retorno do vapor d’água em forma de chuva. Para que chova é preciso florestas.
Júnior – Então uma árvore é como uma estação de tratamento, é isso?
J.B. – Sim! Ela pega o ar poluído e tira o gás carbônico como as estações de tratamento limpam a água do Guaíba. Só isso seria suficiente para preservá-las. Elas são os maiores seres vivos, a maior biomassa do planeta (90%) e chegam a 120 metros. Como as sequóias que o Reagan criticou. Hallé diz que, se você medir a área de uma árvore comum, de 15 metros de altura, você poderá chegar a 200 hectares ou algo próximo do tamanho do principado de Mônaco. Uma árvore! E elas vivem muito. Um homem, vive cerca de 70 anos, a tartaruga das Ilhas Seychelles, 300 anos, mas uma árvore pode chegar a três mil anos. Tem árvore por aí que foi contemporânea dos gregos. Hallé fala do pinus longevo, uma árvore da Califórnia que tem cinco mil anos, o que a faz ser contemporânea dos egípcios que construíram as pirâmides. Já imaginou isso? E há outra na Tasmânia, que diz que tem 43 mil anos, localizada na grande ilha do sul do continente chamada de azevinho real da Tasmânia. Quer dizer, essa é do pleistoceno, um dos períodos ainda mais antigos da terra. Ela conheceu o homem de neandertal.
Júnior – E tem mais alguma utilidade a árvore?
J.B. – Tem. Talvez um dia as árvores nos ensinem a sermos imortais, o que, para Hallé, ”significa que não tem um programa de senescência”. O que é isso? Se controlarmos suas condições, elas simplesmente podem não morrer. Porquê morremos? É por causa da metilação, o processo de envelhecimento dos genes. Começamos a vida com 25 mil genes ativos, mas eles vão diminuindo ao longo do tempo e, por isso, morremos. Isso não ocorre nas árvores. De novo, por quê? Porque elas têm períodos de metilação sim, em que perdem genes, entre a primavera e o inverno, mas elas têm algo diferente, a desmetilação, e nos meses seguintes, os recuperam. Isso por que elas têm uma enzima chamada desmetilase, responsável por desfazer a metilação “alguns gerontólogos questionam o motivo da ausência dessa enzima no homem”, finaliza Hallé. Por isso não pense que somos privilegiados em genes. Não existe essa regra de quanto mais genes melhor, de que o homem é um privilegiado. Só o arroz tem 50 mil genes. Porquê? Porque eles precisam da mais genes para passar o inverno na água fria e sobreviver, alimentar-se de um sol fraco e gás carbônico. Não estamos competindo, ok, cada um está indo em sua direção. Mas aparentemente, as plantas foram mais longe em seu caminho do que nós, é o que diz Hallé. E elas nos dão muito em troca, pois muitas são árvores medicinais. A quina é usada para combater a malária e o paludismo e o ginkgo é usado para melhorar a circulação do sangue no cérebro.
Júnior – Entendi. Bem, agora com essas coisas bem objetivas, fica claro!
J.B. – Não, há coisas mais complicadas e importantes que as árvores fazem e que nos ensinam coisas. E são subjetivas. Espere. Halle diz uma coisa notável. As árvores se…comunicam! A acácia caffra é uma árvore de cerca de cinco metros que existe na região de Pretória. Lá, gazelas chamadas de kudus se alimentam de suas folhas. Mas eles só podem comer suas folhas por vinte segundos, período depois do qual as folhas se tornam venenosas. Então o kudu vai procurar outra acácia, mas sempre contra o vento. Porquê? Porque a árvore passa uma mensagem através do vento para outras avisando a presença de um predador. Como? Pela liberação no ar de uma molécula de etileno sob a forma de hormônio vegetal que carregado pelo ar, avisa outras acácias da presença do kudu, que fica tóxica por um período de 24 horas. Outras formas de comunicação entre árvores existem, como através de fungos. Quando uma plantação de feijão tem uma praga de pulgões, emite outra molécula na atmosfera que atrai os seus predadores. E as pesquisas estão ainda no seu início. É objetivo, é hormônio, mas é talvez subjetivo, é… comunicação! No fundo, no fundo, o que elas estão nos ensinando é a sermos solidários em um momento de perigo. Exatamente como devemos ser nas enchentes.
Júnior – Ok, ok, as árvores são importantes. Mas elas não servem para construir prédios, diz meu pai.
J.B. – Não é bem assim. Na verdade já podemos fazer prédios de madeira. Há um estudo interessante sobre isso na internet. Podemos fazer prédios, mas principalmente casas. Podemos derrubar algumas árvores para produzir o que necessitamos. Mas há quantidades certas e momentos determinados para isso. Por exemplo, hoje sabemos uma coisa certa que era intuição dos antigos: as árvores sofrem influência da Lua. As fases da lua produzem madeira para diversos tipos de atividades, pois tanto a lua como o sol afetam o diâmetro dos troncos. Desde o século XVI sabe-se que se deve cortar a lenha na lua crescente para aquecer a casa e na minguante para fazer construções. Na Suíça chama-se “madeira da lua”, a madeira para construir chalés mais duradouros. Uma árvore pode produzir mais fogo ou ser resistente a ele dependendo da lua em que é cortada. Os luthiers, que fabricam os violinos como o famoso Stradivarius, acompanham a vida das árvores para derrubar somente na melhor época para a construção de seus violinos, no inverno, quando a lua não aparece. O problema é que não se derrubam árvores de forma a permitir a natureza se recompor, simplesmente se dizima uma floresta. Acaba-se com centenas de árvores simplesmente para fazer pastagens, com queimadas. Isso mata árvores e animais nativos, afeta a natureza, a desiquilibra. Para os capitalistas, não há medida para o lucro. Mas as árvores são parte de nossa história, parte do que somos.
Júnior -Pera aí, do que somos? Eu não sou parente de árvore nenhuma não!
J.B. – É aí que você se engana. Há um último motivo para proteger as árvores. É o lugar onde viviam nossos antepassados. Quer dizer, há um debate. Há duas correntes hoje na França que debatem isso. A primeira é do Centro Nacional de Pesquisas Científicas da França que acredita que, por mais que recuemos no tempo, sempre encontraremos como nossos antepassados seres terrestres, verticais e bípedes. Esses então não teriam nada a ver com árvores. Mas tem a escola ligada ao Collège de France, que acha que no passado fomos arborícolas. Quando Charles Darwin disse que “o homem descende do macaco”, ele quis dizer isso. Mas o macaco e o homem foram contemporâneos, e por isso, diz Hallé que “não podem descender um do outro, [mas podemos dizer que] o homem e o macaco possuem um ancestral comum”. Para Hallé, existe bons argumentos para isso. Primeiro porque há poucos animais verticais. O mais conhecido é o pinguim imperial, do filme, A marcha dos pinguins que você deve ter visto. Depois o cavalo marinho. Há macacos que andam de quatro nas árvores, mas há outros que praticam a braquiação, isto é, usam as mãos para se movimentar entre as árvores e andam na posição vertical. Além disso, nossas mãos são semelhantes à desses macacos, como as dos gibões, pela oposição entre o polegar aos demais dedos. Esse polegar continuou existindo em nós porque encontrou outra utilidade, mas foi criado pela braquiação. Nossos olhos também são próximos por essa razão, porque para se movimentar entre árvores, é preciso uma visão tridimensional, que só a noção de profundida permite. Para o macaco das árvores, errar o alvo ao tentar pegar um galho no deslocamento era a morte. Outros animais não precisam disso e por essa razão, tem olho um de cada lado. Assim, o homem não pode olhar para trás. E vivem em grupos para se proteger. Diz Halle que “alguns antropólogos norte-americanos sugerem que a vida em sociedade teria resultado desse ponto cego e da necessidade de que ele fosse coberto por um amigo. Sem as árvores não seriamos seres humanos”. Se cortamos uma árvore, não apenas não sabemos se crescerá ou não. Algumas voltam, depende da idade e da natureza. Mas o pior é acabar com algo que foi testemunha de nossa história. Podemos até não ser parentes, mas elas foram fundamentais para o que somos. Somos solidários, e portanto, humanos, graças as árvores. Isso não podemos esquecer.
Júnior – Cai na prova, então?
J.B – (silêncio).
Som da sirene.
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Foto da Capa: Freepik