Talvez tenha sido sempre assim e eu que não notei, mas me parece que há neste exato momento em que a literatura segue encolhendo como espaço de debate público um embate meio antigo travado com armas novas: o da crítica como atividade com direito próprio e autonomia e o mercado editorial como o canal de escoamento da literatura e também como empreendimento comercial necessitado de lucro. As armas novas trazidas para essa peleja de resto recorrente ao longo do último século é a forma como as editoras investem atualmente no engajamento de novos leitores, fazendo um marketing de intenções progressistas por um lado e investindo no novo modelo de discussão sobre literatura trazido com a aparição de uma nova ferramenta tecnológica: o blog/vlog/canal/perfil de TikTok de livros. Um modelo de interação denominado por uma palavra que sempre me arrepia um pouco pelos sentidos implícitos e vagamente impróprios de codependência que carrega: “parcerias”.
Ninguém aqui é ingênuo e editoras precisam vender, assim, não há por que achar errado que elas se engajem em estratégias comerciais, a questão é quando, em nome da sua sobrevivência financeira, o sistema literário parece estar tentando sustentar essa sobrevivência na altercação da crítica usando para isso modelo “algoritmo-cultura de fãs” da estrutura contemporânea das redes sociais.
Salvar o Fogo
Para um campo que não anda primando pela influência, tivemos recentemente algumas tretas muito estranhas em que editoras e até mesmo autores andaram comprando brigas com críticas negativas de um modo que não parece ser uma resposta proporcional numa troca dialógica, e mais tentativas de parte a parte de jogar um fandom contra o outro. A mais rumorosa (o que talvez seja natural, considerando que envolve o autor de um dos livros de mais repercussão da literatura brasileira recente) vem sendo a que opõe Itamar Vieira Júnior à professora de Letras da UFMG Lígia G. Diniz. Lígia escreveu para a revista Quatro Cinco Um uma crítica a Salvar o Fogo, segundo romance de Itamar, autor consagrado nacionalmente por seu anterior Torto Arado. O texto em si era uma crítica ponderada, embora eu, lendo-a, fiquei um pouco incomodado com o quanto o fator “best-seller” do livro anterior parecia ser constantemente chamado para referendar o juízo sobre um segundo livro recém-chegado e ainda pouco lido. Mas era uma crítica que, no seu conjunto, não parecia irrazoável.
O que se seguiu depois foi que gerou o problema, com todos os lados conseguindo a proeza de estarem um pouco errados. Pra resumir: Itamar deixou de seguir Lígia nas redes sociais, Lígia reclamou nas mesmas redes. Itamar usou seu espaço no jornal para dizer que a professora era racialmente motivada em suas críticas, feitas por uma “branca” na revista do “editor branco”. Itamar comparou a crítica que recebia ao caso Vini Júnior. Apareceu então, sem que eu saiba quem tenha chamado, José Eduardo Agualusa, pra dar um “pito” de uma condescendência constrangedora no próprio Itamar – Itamar que já tem um histórico ele próprio de problemas com manifestações dirigidas a sua obra, uma vez que a jornalista Fabiana Moraes, do Intercept, já havia exposto (uso este verbo deliberadamente, justificarei na sequência) uma mensagem privada enviada pelo escritor para rebater em termos ásperos um tuíte no qual ela falava do livro.
A partir daí, cada nova camada, cada nova réplica, parecia enterrar sob a lógica da treta de redes sociais tanto o livro original de Itamar quanto a crítica que deu motivo a tudo. A ponto de muito da discussão posterior – e parte da anterior, diga-se – se estruturar na lógica das redes ela mesma, com gente se alinhando automaticamente não a uma leitura, mas ao personagem. Os que desagravaram Lígia, os que defenderam Itamar, os que acham que Agualusa “disse umas verdades”. O alinhamento de muitos ao texto de Agualusa também não parecia ser ao que ele argumentava (que, como eu disse, era algo com que até eu poderia concordar não fosse o tom condescendente), mas ao fato de haver colocado o “encrenqueiro” Itamar em seu lugar – uma postura que, essa sim, esconde ou ignora um substrato racista bem característico da sociedade brasileira que escamoteia suas questões raciais sob o viés da paz imposta de cima com o mito da “democracia racial” ou ” da harmonia entre raças”.
Alinhamento
Chegou um ponto que cada nova manifestação era mais ou menos fácil de prever de acordo com o seu autor e com o histórico anterior de suas visões políticas (imagino que vá render um trabalho acadêmico interessante esse cotejo, mas nem a pau seria eu a fazê-lo), numa demonstração didática do “ecossistema da opinião” que vigora nesta era da internet de algoritmos. Não esquecer que um momento-chave da polêmica foi a crítica reclamar de ser “bloqueada no Twitter”, algo que eu em sã consciência não imaginava que veria acontecer há uns cinco ou seis anos. Uma discussão aberta pela jornalista Fabiana Moraes com Itamar ainda antes disso também era bastante profícua: o quanto o romance anterior de Itamar, Torto Arado parecia estar se beneficiando também de uma estratégia de “hypar” conceitos emprestados das lutas dos movimentos identitários como marketing editorial. Pena que essa própria discussão emerge de outra polêmica que tinha características de dinâmicas de rede – algo que vejo no “exposed” das mensagens de Itamar, por exemplo.
Com tudo isso, o que menos tivemos sobre Salvar o Fogo foi crítica. A treta, tenha sido essa a intenção de Itamar ou não (alguns acusam que essa era a justamente a intenção, mas eu não sou leitor de mentes, além do mais a insistência de Lígia Diniz de reclamar porque), acabou por criar um clima de instabilidade que, para mim, olhando de fora, prejudica a construção de fortuna crítica do livro, porque a sombra de uma possível confusão extra literária com qualquer ressalva ao romance, por mínima que seja, agora é um fator real a ser considerado. Talvez seja bom para o autor (não sei), mas duvido que seja para o livro. Respondendo a uma pergunta feita pelo maestro Celso Loureiro Chaves em uma entrevista publicada na Zero Hora faz uns bons 10 ou 15 anos sobre se ainda haveria função para a crítica de música erudita no Brasil contemporâneo, Arthur Nestrovski afirmou: “A crítica tem função se a música tem função. Mas a função da música diminui quando a crítica desaparece. Então, no mínimo, uma das funções da crítica é reforçar a inserção da música no cenário cultural. O que não é pouca coisa”. É algo que poderia ser de algum modo estendido para a literatura, não estivéssemos em um momento em que a própria reinserção muitas vezes seja ela própria e seus termos alvo de disputa.
Booktubers
Noutro canto do atual ecossistema complexo do mercado editorial, há a relação de “parceria” conflituosa das editoras com os novos divulgadores do setor, os chamados “booktubers”. Há alguns anos, a mais famosa desses personagens, a professora Tatiana Feltrin, também teve seu momento “exposed” quando foi divulgada uma tabela enviada por ela cobrando para resenhar livros em sua plataforma (a coisa já faz algum tempo, mas me lembro nitidamente de que foi ali que concluí que estava meio velho talvez para esse ofício, quando uma gama considerável de “fãs” da booktuber vieram a público para defender com naturalidade esse procedimento porque era “esse o trabalho dela”). O termo que as editoras usam para descrever sua relação com os canais aos quais mandam livros para divulgação é “parceria” – algo que considero impróprio por lançar uma nódoa um tanto incômoda sobre a independência da análise quando há uma troca de favores em jogo: o leitor recebe o livro de graça na lista de divulgação da editora. Topará falar mal de um livro arriscando-se assim a sair dessa lista? Ninguém está dizendo que o Youtuber vai pensar assim, que a empresa vai pensar assim, que a coisa vai se processar dessa forma, mas a natureza algo incerta da relação autoriza sim esse tipo de desconfiança.
A bem dizer, a desconfiança já existia antes, direcionada aos critérios da crítica praticada nos veículos de imprensa tradicionais. Boa parte dos erros notórios que tornaram muitos críticos famosos pelos motivos errados estavam, aliás, atrelados a momentos em que a opinião de um crítico era contaminada por suas idiossincrasias e interesses escusos. O próprio “luminar da crítica brasileira” Sílvio Romero, elogiado pelo mestre Antonio Candido por se elevar acima do “impressionismo” que marcava a crítica em seu tempo e adotar um viés “metódico”, passou à história como “o cara que detestava Machado de Assis“, e detestava mesmo, ele achava que um parça seu, por exemplo, Tobias Barreto, merecia mais a aclamação crítica do que os livros “pobres e mal escritos” de Machado, cujo estilo chamou maldosamente de “gago” como forma de casar alfinetada crítica e ofensa pessoal, já que uma leve gagueira apresentada por Machado era, sabia-se no Rio de sua época, motivo de algum constrangimento para o bruxo do Cosme Velho. Você pode ser um crítico metódico e tals, ok, mas quando suas simpatias pessoais impedem que você reconheça apenas o maior escritor brasileiro do século que virá, bem, fica comprometido de imediato muito do restante do seu trabalho. Logo, dúvidas sobre o critério da crítica sempre houve. O que não havia era essa horda de “fãs” contemporâneos de resenhistas audiovisuais justificando os atos algo suspeitos de seus ídolos.
Lúcia Helena
Isso marca, claramente, uma mudança de cenário em que a crítica vem sendo sempre colocada em xeque – às vezes por motivos justos, às vezes por jogos retóricos. Crítica é opinião, sabemos todos, e talvez por isso hoje ela tenha caído numa certa desvalorização devido à expansão geométrica da opinião como fenômeno. Mais do que uma leitura desapaixonada, essa opinião crítica também é formada pelo espírito do tempo. No prefácio do ótimo estudo Tolstói ou Dostoiévski, o crítico francês George Steiner já lembrava desse aprisionamento da crítica em seu tempo, até maior do que o da obra literária em si:
“Livros de crítica e interpretação literária tendem a possuir vida curta. Há exceções, é claro. O tratado crítico de, digamos, Aristóteles ou Samuel Johnson ou Coleridge torna-se, ele próprio, literatura. Isso acontece devido à força filosófica, à particularidade de estilo ou pela contiguidade. Há casos em que o argumento teórico-crítico é parte integral da obra imaginativa (a polêmica de Proust contra Saint-Beuve; os estudos de T.S.Eliot). Tais casos, no entanto, continuam sendo excepcionais. A maioria dos estudos literários, eminentemente acadêmicos ou acadêmico-jornalísticos, tem dias curtos. Corporificam um momento mais ou menos específico da história do gosto, valoração e debate terminológico. Rapidamente, eles encontram enterro decente nas notas de rodapé ou acumulam a silenciosa poeira das estantes das bibliotecas.”
Talvez essa maneira de fazer crítica, episódica, comprometida, militante, muitas vezes vinculada não à obra e sim ao arcabouço externo que a cerca, da ideologia do autor ao portfólio da editora, do carisma pessoal do crítico ao seu número de seguidores, venha a ser a nova crítica pelas próximas décadas e aí quem está dando uma de Síivio Romero seja eu, não vendo o futuro que está na minha cara. Mas não deixo de ver nisso o desaparecimento de um tipo de crítica que era sim muito útil e necessária como uma forma de agregar sentidos novos, apontar vinculações elípticas ou ocultas ou mesmo “conduzir leitores a pensar na especificidade do texto literário, no fenômeno literário em suas relações com a cultura”, nas palavras da pesquisadora e crítica literária Lúcia Helena (foto da capa).
Professora da UFF e da UFRJ falecida no último sábado, Lúcia Helena foi uma intelectual inquieta (adjetivo eu ela própria usou em um de seus livros) que nunca parou de dialogar com o que de mais novo e promissor havia no campo da crítica, com um olhar que se estendia do modernismo à filosofia contemporânea de Agamben, com um amplo foco de interesses que transitou de Clarice até Coetzee, passando por um livro monumental sobre Pessoa e representações do naufrágio. Uma formadora de sensibilidades muito mais otimista do que eu, por exemplo, como declarou numa entrevista para a revista da UFF Policromias em 2018:
“Apesar de minha consciência crítica dos perigos dos seres para os seres e para a natureza e os animais, acredito que existe esperança para a literatura, que necessariamente tem mudado de perfil, de acordo com os tempos e os costumes e sua interação com outras mídias. Não poderia existir se não acreditasse que existe esperança para a humanidade.
Mas, alerto, somos sempre ‘náufragos desta esperança'”.