Vivemos em uma sociedade onde o “sucesso” e o “fracasso” são frequentemente atribuídos ao esforço individual. O discurso neoliberal enfatiza a meritocracia, fazendo com que cada indivíduo se sinta responsável por sua própria condição, seja ela de êxito ou de fracasso. Esse fenômeno gera uma “culpa neoliberal”: se não conseguimos atingir determinado padrão de vida, a culpa é exclusivamente nossa.
Essa lógica desconsidera fatores estruturais, como desigualdades históricas, condições socioeconômicas e políticas públicas. O desemprego, por exemplo, muitas vezes é tratado como falta de empenho do trabalhador, e não como consequência de crises econômicas ou da precarização do trabalho.
A culpa neoliberal nos faz acreditar que estamos sempre em débito com a produtividade, o sucesso financeiro e a constante busca por aperfeiçoamento. Assim, mesmo quando cumprimos todas as exigências do sistema, o sentimento de insuficiência persiste.
Adorno e Horkheimer argumentam que, no duodécimo canto da Odisseia, especificamente no episódio do encontro de Ulisses com as sereias, já se observa uma clara divisão entre trabalho intelectual e trabalho físico.
Antes de desenvolver esse ponto, é necessário fazer uma breve digressão para contextualização. Os autores, em Dialética do Esclarecimento (1947), enxergam o Iluminismo (Esclarecimento) não apenas como um período histórico, mas como um processo contínuo de racionalização que teve início na transição do pensamento mágico para o mito e, posteriormente, para a razão. Esse movimento foi impulsionado pela necessidade humana de dominar a natureza, vista como um obstáculo à sua existência.
No entanto, o pensamento mágico, apesar de oferecer alguma estrutura interpretativa da realidade, não era suficiente para garantir segurança plena ao homem. Como afirmam Adorno e Horkheimer, os objetos concebidos por meio desse pensamento “poderiam ser ao mesmo tempo eles mesmos e algo distinto, idênticos e não idênticos” (Dialética do Esclarecimento, 1947/2006, p. 26). Essa característica ambígua reflete a tensão entre mito e razão, evidenciando como a própria busca por esclarecimento contém em si elementos de dominação e alienação.
No episódio das sereias, essa dinâmica se manifesta na estratégia de Ulisses: ele deseja ouvir o canto das sereias, mas, para isso, delega aos seus marinheiros a função braçal de remar com os ouvidos tampados. Essa cena ilustra de maneira simbólica a separação entre aqueles que têm acesso à possibilidade de regredir a uma mimese incontrolada, ao prazer, e aqueles que são condenados ao trabalho físico sem reflexão. Tal divisão ecoa ao longo da história e se perpetua no mundo moderno, onde a razão instrumentalizada (que denota a crise atual da razão) reforça desigualdades ao invés de superá-las.
Sendo assim, o trabalho intelectual e o ócio não eram vistos como elementos negativos; em outras palavras, “não fazer nada” não gerava culpa. No entanto, no contexto contemporâneo, o divertimento e o lazer frequentemente vêm acompanhados de um sentimento de culpa. Isso ocorre porque, durante o tempo livre, o indivíduo não está produzindo algo tangível, ou seja, não está “lucrando” para o capital. Parece que, nos dias de hoje, só nos sentimos verdadeiramente bem quando estamos colocando nossa força de trabalho a serviço da exploração ou quando utilizamos nosso tempo livre para atividades alinhadas às ideias de “sucesso” e “progresso” dentro da lógica capitalista.
Ponderando sobre o exposto por Erich Fromm em seu livro ‘Ser ou Ter?’ penso que adotar uma postura que privilegie o ser em vez do ter é fundamental para refletirmos sobre nossos comportamentos e atitudes diante do cenário adoecido em que vivemos. A precarização do trabalho, o lazer transformado em mera extensão das obrigações profissionais e do mundo capitalista, a existência pautada pelo acúmulo material e a culpa incessante imposta pela lógica neoliberal compõem um ciclo exaustivo e alienante.
Nesse contexto, é urgente questionarmos os valores que nos regem e buscarmos novas formas de existência que priorizem o bem-estar, a coletividade e a autenticidade. Romper com essa lógica não é simples, mas passa pela construção de relações mais humanas, pela valorização do tempo livre como espaço de descanso genuíno e pela compreensão de que nosso valor não deve ser medido apenas pela produtividade ou pelos bens que possuímos. Assim poderemos (quem sabe?) caminhar em direção a uma sociedade menos adoecida e mais conectada com aquilo que realmente importa: a vida, a existência.
Ralf Diego Silva de Souza é psicólogo e professor universitário. Atualmente, é mestrando em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e possui especialização em Psicologia Hospitalar pela ESUDA. Dedica-se ao estudo aprofundado de temáticas concernentes à Psicanálise Kleiniana, Marxismo, Teoria Crítica e Escola de Frankfurt. ralfsouzapsi@gmail.com
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