Se comparada com o fôlego monumental demonstrado por Roberto Bolaño em obras como 2066 ou Os Detetives Selvagens, Amuleto é uma novela bem curta. Narra a história de Auxílio Lacoutourre, uma poeta hippie chilena que vive no México e sobrevive fazendo bicos de traduções e datilografia na Universidade Nacional (UNAM). Em fins de setembro e início de outubro de 1968, quando o exército invade a instituição para acabar com uma série de protestos estudantis, Auxílio se esconde em um banheiro do quarto andar da universidade e ali fica oculta por 11 dias, sobrevivendo apenas da água da torneira. Durante esse período, a fome e a tensão a fazem entrar em uma onda de delírio na qual revê seu passado e alucina com seu futuro, numa prosa carregada de idas e vindas e cujo ritmo hipnótico tenta reproduzir as viagens desconcertantes e desconcertadas da psique da própria Auxilio.
A invasão do exército à universidade é parte de algo que passou à história como a Guerra Suja Mexicana, na qual o governo autoritário e populista do presidente curiosamente chamado Gustavo Ordaz Bolanõs (mas com o “s” que o sobrenome do escritor não tem – aliás, é essa a diferença também entre o escritor e aquele palhaço da TV que todo mundo mais novo do que eu aparentemente adora) empregou pesada repressão para encerrar uma série de manifestações contra a realização, em 1968, dos Jogos Olímpicos no México (impossível não achar a situação familiar neste ano em que se completam 10 anos da malfadada empreitada aventureira da Copa no Brasil). A ocupação da universidade é uma violação simbólica da autonomia do espaço, por si só grave, mas na mesma onda de repressão ocorreria um dos mais vergonhosos episódios da já conturbada história política do México, o massacre de Tlatelolco, quando a milicada, sob ordem do presidente, abriu fogo contra uma imensa concentração de cinco mil manifestantes na Praça das Três Culturas. A historiografia oficial computa como resultado desse absurdo apenas quatro mortos e vinte feridos. Vários outros relatos falam em centenas de vítimas fatais.
Isolada em seu refúgio, diante de seus próprios excrementos, Auxilio repassa sua trajetória de última resistente num espaço que foi conquistado pelo arbítrio, até se ver como talvez uma das últimas habitantes do planeta. Ao mesmo tempo, Auxilio tem a intuição de o quanto tudo o que está ocorrendo, principalmente o massacre de Tlatelolco, representa uma encruzilhada histórica cujos ecos se propagarão até o futuro: “na universidade não houve muitos mortos. Foi em Tlatelolco. Esse nome há de ficar em nossa memória para sempre!”.
Tendo nas mãos esse papel de narradora de um momento de crise que finca raízes no próprio tempo, Auxilio passeia pelo presente e pelo passado, como se narrasse de um ponto impreciso da cronologia. Por exemplo, trancada durante dias de 1968, ela ainda assim “rememora” como conheceu o poeta Arturo Belano (alter ego do próprio Bolaño) “lá por 1970”, por exemplo. Não à toa, aliás, o nome da personagem é de uma simbologia mais do que aberta, escrachada, com Auxílio seguido de um sobrenome francês que significa literalmente “a cultura”, presa sem comida e água diante de seus próprios excrementos. Para fazer jus a essa alusão, Bolaño carrega em Amuleto nas tintas da intertextualidade alusiva.
Referências
As reflexões de Auxilio parecem ser as da própria cultura, tantas as referências e alusões literárias presentes no texto. Para começar, a própria Auxílio tende a ser lida como uma referência à poeta real Alcira Scaffo, amiga de Bolaño que viveu um episódio parecido de refugiar-se no banheiro durante a invasão da UNAM. Refugiada, a Auxilio do livro não é apenas uma transposição de Alcira, contudo. A forma como Bolaño a retrata a transforma numa alegoria da memória e da literatura escondidas impotentes diante da escalada da barbárie.
“Pensei: a vaidade da escrita, a vaidade da destruição. Pensei: porque escrevi, resisti. Pensei: porque destruí o escrito vão me descobrir, vão me pegar, vão me violentar, vão me matar. Pensei: ambos os fatos estão relacionados, escrever e destruir, se esconder e ser descoberta. Depois me sentei no trono e fechei os olhos”, narra Auxilio, a do livro.
A personagem forma suas convicções intelectuais no convívio com dois poetas espanhóis reais exilados no México, León Felipe (1884 ― 1968) e Pedro Garfias (1901 ― 1967) (de quem ainda carrega algumas páginas de poemas que lê enquanto está presa no banheiro). Depois, torna-se uma espécie de madrinha boêmia da jovem geração de poetas mexicanos, que, ao encontrarem com ela nos desvãos de sua intensa vida boêmia, sempre lhe apresentam textos para que leia e comente. Oscilando entre uma autodescrição jocosa que ri da própria aparência algo desmazelada e um apego à vaidade artística que por vezes parece exagerar muitos detalhes da própria importância, Auxilio conta que esse tipo de interação é frequente o bastante para que alguns jovens escritores tenham dado a ela o apelido carinhoso de “mãe da poesia mexicana” — um deles o próprio Belano, versão disfarçada do Bolaño autor do livro.
A aparição de Belano na história não deixa de ser uma espécie de autoanálise intelectual e artística do próprio autor. Jovem expatriado chileno, Belano volta para seu país natal após a eclosão da repressão brutal que testemunhou. No Chile que logo será ele próprio também uma ditadura, não consegue articular o que viu e reage com o silêncio. No México, seus principais contatos e amizades deixam de ser com a geração que está se consolidando, e sim com uma ainda mais jovem “geração saída diretamente da ferida aberta de Tlatelolco”. Bolaño é de uma geração que viveu o exílio depois da queda de Salvador Allende, em 1973, e sua literatura, produzida após o chamado “boom” que colocou a ficção latino-americana no mapa global, está sempre permeada da tensão entre estar confortável em qualquer lugar que se esteja e se sentir perdido não importa o destino.
A experiência política vista por Bolaño também não é o teatro cômico e fantástico olhado de viés por muitas das obras do Realismo Mágico, mas um destino trágico não de todo desprovido de violência. Sua prosa, mesmo nos livros mais extensos, é incisiva, calcada em imagens, vagando entre a poesia e o coloquial.
Bolaño viveu longas temporadas no México, cenário de muitos dos seus melhores trabalhos (dos extensos e já mencionados Os Detetives Selvagens e 2666 até contos como o magistral O Olho Silva, texto de abertura da coletânea Putas Assassinas). Seu intenso retrato críptico da América Latina como um teatro de pulsões conflitantes, ameaçadas por um horror subterrâneo sempre à espreita, explica a permanência e a força de sua obra – Amuleto não é uma das suas obras mais conhecidas, mas é uma das mais abertas em documentar essa tensão entre a barbárie do arbítrio e o anseio libertário da arte, representada por Auxilio. O que talvez intrigue seja por que seu trabalho só ganhou a repercussão que ganhou após sua morte. Talvez sua morte precoce, ocorrida por falência no fígado aos 50 anos, tenha sacramentado sua pessoa como um exemplar contemporâneo do escritor como figura romântica e genial, tão cara ainda a uma concepção de literatura meio presa dois séculos lá atrás.
Mas seus livros sempre são – e serão – mais do que isso.
Foto da Capa: Exército mexicano reprime manifestações/1968 - sem crédito