A Senhora Tucholsky – tenho razões para dar-lhe o nome com que garanto seu anonimato – sempre fora bastante determinada e independente. Solteira, com uma carreira de sucesso no jornalismo, adepta de uma alimentação saudável e, apesar de não praticar exercícios regularmente, caminhava muito. Aprendeu a dirigir ainda jovem, num tempo em que poucas mulheres o faziam. O DeSoto, que comprara de um tio, descansaria por décadas, imóvel sobre cavaletes, numa garagem. Até ser adquirido por um colecionador.
Já era minha paciente há alguns anos, quando me questionou se eu lhe faria um favor. Confiava em mim e entendia que talvez pudesse me ofender, mas exigia garantias de que, sob nenhuma hipótese, a não ser uma única e relacionada ao propósito em si do que pretendia, eu revelaria aos familiares, seus irmãos, cunhadas e sobrinhos, o que iria me pedir.
Argumentei que poderia confiar em meu sigilo, preceito de juramento profissional e conduta ética. Ela, então, falou-me do que planejara. Mostrou-se imensamente aliviada quando concordei em dar testemunho a um documento a ser assinado em cartório e que nos dias de hoje é conhecido como testamento vital.
Eu apenas teria que atestar que ela estava com boa saúde e em pleno gozo de suas faculdades mentais e ciente de sua expressa vontade. Ela não queria ser submetida a nenhum tratamento ou procedimento fora de possibilidades terapêuticas ou de prolongamento artificial da vida, caso alguma doença grave, acidente ou condição lhe ameaçasse.
– Ameaça à vida até não temo – disse ela. Apavora-me a ideia de estar presa a alguma máquina ou mesmo a inconsciência e não ter a liberdade de escolher se aceito ou não este ou aquele caminho. O que me preocupa é que minha família ou algum outro médico, mesmo que com as melhores intenções, não me deixe partir de forma digna e no tempo certo.
À família, ela só recomendaria que me avisassem se por qualquer razão, caso algo lhe acometesse e eu não soubesse. Uma internação às pressas… Imprevisibilidades que a idade faz tornar estatisticamente mais possível. Eu, então, deveria revelar o documento que me confiara.
Ela sempre buscou viver bem. Preparava-se agora, antes que fosse tarde, para ter também uma boa morte.
Passei a pensar nela como Senhora Tucholsky em referência à Kurt Tucholsky (1890-1935). Ele foi um dos mais importantes intelectuais alemães do princípio do Século XX. Cronista satírico e combativo da República de Weimar, orador brilhante, autor de cabaré, socialista e pacifista, escreveu para diversos jornais sob múltiplos pseudônimos. Uma vida agitada num tempo frenético e convulsivo, entre aventuras amorosas e o exílio forçado devido ao nazismo.
Em 1929, mesmo ano que nasceria minha paciente, escreveu um texto denominado “Apreensão”. Nele, o narrador se questiona mais ou menos assim:
“Saberei como morrer? Às vezes receio que não.”
O que estou querendo saber é: como lidar com isso quando chegar a hora? Ah, não estou me referindo à postura altiva, aquela história de estar num paredão e gritar – Viva!… Algo mais ou menos assim enquanto você a pega pelo pescoço. Não aquele minuto antes do ataque de gás, suas calças repletas de coragem e seu rosto heroico fazendo caretas para o inimigo… Nada disso. Nem tampouco aquela história de estar numa cama: fraqueza, dor e então, a hora derradeira. A questão é como se “comportar” nesse momento.
Um exemplo: durante anos eu nunca consegui espirrar corretamente. Eu o fazia como um cachorrinho bem pequeno com soluços. E, que me perdoem o termo, até os vinte e oito anos eu não sabia dar um arroto; até que conheci o Carlinhos, um amigo universitário, ele me ensinou. Mas quem vai me ensinar a morrer?
Sim, eu vi isso acontecer. Eu fui a uma execução e vi pessoas doentes morrerem – e até parecia que elas faziam aquilo há muito tempo. Mas como será no meu caso, se eu bobear na hora? Afinal, isso não é improvável.
Alguém dirá – não se preocupe, sem estresse, meu velho, na hora tudo se ajeita. Você tem uma falsa ideia de morte… Mas esse alguém ou qualquer outro está falando por experiência própria? É a mais verdadeira de todas as democracias, essa democracia da morte. Como se explica a presunção altiva de todos os padres, sacerdotes, pastores e rabinos, que agem como se já tivessem morrido cem vezes, como se já tivessem visitado várias vezes o outro lado e agora se portam como mensageiros da morte entre os vivos?
Talvez não seja tão difícil, afinal. Um médico me ajudará a morrer. E, se a minha dor não for exageradamente excruciante, quem sabe eu ainda possa esboçar, algo constrangido, meu melhor e mais modesto sorriso e dizer: – Por favor, não me entenda mal, é a minha primeira vez…”
A minha Senhora Tucholsky, mesmo sendo a sua primeira vez, já decidira como não queria morrer.
Foto da Capa: Acervo do autor.
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