O que é um dromedário? Será apenas um camelo de só uma corcova? Essa é uma pergunta que surge em quem vê o quadro de Lígia Zilbersztein reproduzido abaixo:
Na obra, composta de seis quadrinhos, quase todos trazem desenhos de dromedários e está escrito em sequência:
- A existência do dromedário está sempre associada ao outro,
- ele é universalmente conhecido por ser muito semelhante ao camelo,
- mas com uma corcova a menos,
- sua existência se dá por uma ausência,
- o reconhecem pelo que ele não é,
- pobres dromedários, um dia serão mais reconhecidos.
Esse quadro está na entrada da minha casa, foi comprado porque me identifiquei e diz muito sobre o que penso, estudo e escrevo sobre deficiência e autismo.
A deficiência ainda é vista por muitos somente como uma “falta” em relação aos indivíduos ditos “normais”. Isso leva muitas vezes a pessoa com deficiência ser vista somente pelo que lhe “falta” e não pelo que ela é. Como já ouvi de um cadeirante: “A minha cadeira de rodas chega antes de mim em qualquer ambiente”. Sem contar as situações em que as pessoas enxergam somente a deficiência e não a pessoa. Outra consequência disso é a pessoa com deficiência ser tratada como alguém que se caracteriza por “não ter algo”, uma ausência, logo, uma pessoa incompleta.
Um dos motivos para isso é o modelo médico de deficiência, pensamento ainda muito presente na sociedade e que considera deficiência como uma questão de saúde individual e a pessoa com deficiência como alguém à espera de ser “consertada” pelo saber médico.
No autismo, em especial no movimento da Neurodiversidade, esta forma de pensar e falar é chamada de “linguagem do déficit”, onde o autista é alguém “defeituoso” e não “diferente”. Como nos mostram Camila Valle Coelho e Luana Ribas, em artigo publicado no livro “Linguagem e Autismo”, o autista tem “déficits na linguagem, na interação com pares, restrição na imaginação, dificuldade com expressões emocionais, inflexibilidade de pensamento”.
Essas definições sempre olham a corcova inexistente, dizem o que falta para aquele dromedário ser um camelo “normal” e não enxergam que um dromedário não é um camelo!
Diante desse quadro, temos a recorrente posição que praticamente toda situação envolvendo uma pessoa com deficiência ou um autista é explicada unicamente por suas limitações. O dromedário é rotineiramente considerado como despreparado para viver entre camelos, até mesmo quando ter uma ou duas corcovas é irrelevante para a tarefa.
Como diz a reconhecida cientista autista Temple Gradin: “Foque no potencial e não nas limitações.”
O foco nas limitações, na ausência, faz com que dromedários sejam tratados como camelos incompletos e que sejam ensinados que seus problemas são consequência da corcova inexistente. Mas eles não são quase camelos, eles são belos dromedários. Quem ainda não entendeu isso, que aprenda.
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