Expressões como gestão democrática, tão comuns em minha área (educação), inspiram-me, sempre, um pouco de desconfiança, sobretudo porque me parece tratar-se de um oximoro: uma, como diziam os latinos, contradictio in termini. Gestão supõe um conjunto de instrumentos, recursos humanos e técnicos, uma burocracia racionalizada e um conjunto de princípios normativos e impessoais tais como eficiência, eficácia, produtividade, economia e resultados. Gestão é um problema de competência técnica. Já a democracia, na qual diferentes opiniões se encontram e se enfrentam num lugar de visibilidade e de audição, lugar da AÇÃO (Arendt), não é coisa de competentes, mas de indivíduos conscientes do que está em jogo num debate público, indivíduos capazes de examinar argumentos, de propor, de decidir, de se colocar no lugar do outro (uma outra forma de competência, se quisermos!). Quando estas duas palavrinhas se juntam – gestão democrática –, elas formam, como disse, uma espécie de oximoro, a junção de expressões semanticamente contrárias: é o casamento da panela de barro com o pote de ferro: receio que o pote da gestão vai bater e a panela de barro democrática, coitada, vai apanhar!
Certa vez, Tocqueville afirmou no seu clássico A democracia na América: “Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia se produzir no mundo: vejo uma multidão inumerável de homens semelhantes e iguais que giram sem repouso sobre si mesmos para obter pequenos e vulgares prazeres, com os quais enchem suas almas. Cada um está como que alheio ao destino de todos os outros. […] Acima deles se eleva um poder imenso e tutelar, que se encarrega de lhes assegurar o prazer e zelar por seu destino. Assemelha-se ao poder paterno, mas fixa-os irrevogavelmente na infância” […]. Assim, parece que desde o século XIX já sabíamos que o futuro da democracia de massas seria esta atomização despolitizada dos indivíduos tornados cidadãos-crianças, e há um ATOR responsável pelo ódio à democracia: o consumidor obsessivo, imaturo, narcisista e hiper-individualista! Como se a Democracia tivesse se tornado “o reino dos desejos ilimitados dos indivíduos da sociedade de massa moderna” (Rancière).
Mas o ATOR antidemocrático contemporâneo vai muito mais longe: para ele, é este inconsequente respeito às diferenças, a affirmative action que destrói o universalismo republicano, estabelece o reino universal de uma igualdade ilusória, arruína hierarquias tidas como naturais e tradicionais (de saber, de status, de classe, de origem, de idade…) e que, resumidamente, se expressa numa tese: a boa democracia é aquela que reprime a catástrofe da civilização democrática, que se resume, por sua vez, num dilema: ou a democracia significa uma larga participação nas coisas públicas ou é uma forma de vida social que canaliza as energias para satisfações pessoais. O fato é que, se o Totalitarismo era o Estado que devorava a sociedade; na Democracia, é a sociedade que parece devorar o Estado, estendendo seus tentáculos para todo um modo de vida, das relações familiares às pedagógicas, profissionais, religiosas, amorosas, geracionais… E como, no fundo, não existe regime de governo que não seja, de alguma maneira, oligárquico, então é preciso que as elites sejam protestantes, quer dizer, individualistas e esclarecidas, e o povo seja católico, quer dizer, compacto e mais crente do que consciente, como atesta o pensamento das elites do século XIX, de Guizot a Renan. E a ficção que alimentamos a respeito da soberania popular serviu apenas para alimentar as práticas da divisão do povo que os regimes representativos desempenham tão bem.
Os riscos que a Democracia está correndo, hoje, em todo o mundo – inclusive naqueles países de forte tradição liberal e republicana -, não vem “de fora” do regime democrático – que não é, simplesmente, “mais um regime político”, mas o regime que permite a existência da política – mas, retomo, vem “de dentro”: é o Homo Democraticus que parece estar cansado da responsabilidade e da liberdade civis só possíveis no interior do espaço público-político: é ele que está pedindo a volta do Tirano, o UN de La Boétie (“O discurso da servidão voluntária”), aquele que dá a sensação ao indivíduo isolado de pertencer a um grupo, de ter um projeto comum (mesmo que não seja o dele), o que substituirá a democracia pela gestão, me poupará do debate com os “diferentes” e que construirá um “inimigo” partilhado: o imigrante, o palestino, o pobre, o negro, o comunista. Breve: o “Príncipe da Cizânia” cuja simples existência nos une!
Foto da Capa: Reprodução de Redes Sociais
Todos os textos de Flávio Brayner estão AQUI.