Costumo dizer que “anda difícil a vida do leitor no Brasil.” Em tom absolutamente jocoso, claro, já que tenho plena consciência de que a vida anda difícil para quase todo mundo no Brasil. Mas quando falo sobre essa questão definitivamente menor no amplo espectro das angústias em um país de terceiro mundo com inflação batendo à porta, precarização do trabalho e a extrema direita ainda mostrando seu focinho na esquina, me refiro simplesmente à percepção que cheguei, com um certo incômodo e já há algum tempo, do quanto a qualidade editorial no Brasil decaiu nos últimos anos.
Quando uso o termo “qualidade editorial” não falo do livro como objeto físico, seu formato, sua capa, o papel em que é impresso, a diagramação, embora isso seja também parte da edição de um livro e apresente seus próprios desafios – um deles, o monopólio do papel estabelecido no Brasil nas últimas décadas e que claramente não parece incomodar ninguém além dos diretamente atingidos. O que eu digo é que a qualidade do processo pelo qual um livro vem a ser o que é anda deixando a desejar: a edição do texto, a revisão, a padronização obtida com uma preparação criteriosa.
Gralhas
Quem é leitor constante e já está nessa há algum tempo pode verificar essa afirmativa com exemplos colhidos em qualquer momento e em qualquer publicação, mas confesso que tenho um viés de classe nas minhas próprias observações (se deveria ou não, deixo para outros o julgamento, apenas declaro que comigo é assim). O que eu quero dizer com isso? Que tendo a relevar quando um ou outro erro ou complicação (aliás, no meio editorial, erros de impressão costumam ser chamados de “gralhas”) aparece em algum exemplar de livro publicado por editora iniciante, independente ou mesmo em alguma edição financiada pelo próprio autor.
Faço isso porque nesse tipo de livro, muitas vezes, por questão de orçamento, se costuma buscar meios de cortar ou subtrair os passos da cadeia profissional de edição, preparação, revisão final que se destina a polir o livro como obra de consumo. Eu já não tenho como dar a mesma colher de chá quando chega na minha mão um livro produzido por uma das grandes editoras do país, muitas delas hoje braços locais de conglomerados internacionais, beneficiárias constantes de sua capacidade gargantuesca de gerar hype e que vende livros a mais de cem pilas. Se com tudo isso você ainda está dando uma de muquirana na hora de contratar revisor e preparador, bem, você deve ser alvo de MUITA crítica mesmo.
É a mesma coisa que reclamar da capa de um livro autopublicado. Durante alguns anos como setorista da Feira do Livro no jornal hegemônico da província, mantive uma seção na coluna da cobertura chamada “Capa Brega do Dia”, em que eu vasculhava os balaios de saldos para catar exemplares de obras com capas extremamente sensacionalistas produzidas, a sua maior parte, em 1970 ou 1980. Minha intenção com isso era humorística, mas não agressiva, razão pela qual eu dava preferência sempre a esses exemplares antigos, entre outras coisas, para flagrar mudanças no próprio conceito do que se considera “edição profissional” no Brasil ao longo do passar das décadas. Como as edições da Record que pagavam ao Nelson Rodrigues para usar seu nome como “tradutor” de obras escandalosas de Harold Robbins, por exemplo – aproveitando a fama de “maldito” e de “pornográfico” de Nelson para criar frisson nas audiências, mas, na prática, mentindo aos leitores e violando direitos autorais do verdadeiro tradutor, dado que Nelson era um monoglota incurável e hoje fica até meio difícil saber quem foram alguns dos tradutores originais. Naquele espaço, nunca iria escrachar a capa de uma editora contemporânea independente (a única vez em que houve uma exceção a essa regra foi porque deixei a coluna na mão de um assistente enquanto tinha eu próprio uma sessão de autógrafos na praça e só vi o estrago no outro dia).
Exemplos
Logo, sim, quando tem uma editora grande por trás de um livro custando mais de R$ 50 com uns erros meio desconcertantes, eu fico um pouco… ofendido, talvez?
Alguns exemplos assim a esmo.
Suspense dinamarquês dessa nova onda de thrillers escandinavos que vêm sendo chamada de “noir nórdico”, para se referir à rica e longa tradição do gênero nos países da península. Lá pela página 70, por aí, o livro ainda não deixou muito claras as premissas pelas quais vai estabelecer sua narrativa, o que até me parece interessante, dado que o gênero pode ser prejudicado pela pressa das prosas escritas como se fossem roteiros construídos por indicações de manuais. Só que os vários problemas de tradução me indicam que talvez tenha sido usada na tradução uma outra versão em inglês, e não o original dinamarquês, embora a editora não dê indicação alguma de que a sua tradução foi feita de segunda mão.
A determinada altura, o melancólico (claro) investigador escandinavo lamenta como a violência tem escalado na sociedade dinamarquesa nos últimos anos (tem partes inteiras do sério “noir nórdico” que eu, brasileiro, costumo ler como comédia involuntária essas de pessoas em um país com criminalidade baixíssima apavoradas com “a escalada da violência”). Entre os problemas, ele cita o aumento das ações violentas de “clubes de ciclistas”.
Uma óbvia tradução equivocada dos “bikers clubs” que são, na verdade, clubes de motociclistas, muitas vezes organizações que usam o amor pelas motos para reunir pessoas que estão na verdade interessadas é em supremacia branca e tráfico de drogas – ao estilo do retratado na série Sons of anarchy, por exemplo.
Repito. Clube de ciclistas. Leio isso e fico imaginando uma galera de magrinhos com capacete de isopor sentando a porrada em transeuntes e depois driblando a perseguição policial, pedalando enlouquecidamente.
Livro que saiu pela prestigiada coleção policial de uma das maiores editoras do país, vejam bem.
Segundo exemplo: Livro de um grande teórico e intelectual com obras que se espraiam por múltiplos campos de conhecimento. Este livro, em particular, é uma coletânea de artigos para uma coluna de imprensa que tangenciam, como fio condutor, o conceito de “sociedade líquida” desenvolvido por Bauman.
Já no primeiro texto, na página nove de um volume que tem mais de 400, topo com a seguinte frase:
“A sociedade líquida começou a delinear-se com a corrente conhecida como pós-moderna (aliás, um termo “guarda-chuva” SOBRE o qual se amontoam diversos fenômenos)”.
Um tanto perplexo que um homem com tal erudição tenha usado durante suas décadas de vida o guarda-chuva ao contrário, fui pesquisar o original, e está lá, bem claro, no idioma original, que a ideia era escrever SOB O QUAL, não SOBRE. Logo, o problema é da edição brasileira. De responsabilidade de outra das grandes companhias do Brasil.
Terceiro exemplo: um erudito e alentado ensaio sobre hermenêutica, epistemologia e A Divina Comédia, de Dante Alighieri. Um estudo denso com uma vasta cornucópia de citações, datas, nomes, títulos… E já na introdução, aparece um trecho no qual um determinado sinal de pontuação usado até o fim do Renascimento teria sido usado pela primeira vez num manuscrito do século XIX. Mas uma ilustração aponta para um texto que é do século IX. Vou consultar o original em inglês. E está lá, límpido e claro, o certo era século nono. Ao longo de um processo de tradução, revisão (por duas pessoas creditadas na folha de rosto) e preparação, o livro, bonitinho, com capa bacana e papel idem, veio parar na minha mão com um erro de digitação que altera a história em dez séculos e aparentemente não foi detectado ou corrigido em nenhuma dessas etapas (ganha força a tese de que ninguém lê introdução de livro, nem quem revisa).
Problemas
Como se vê, são exemplos díspares, todos livros publicados por grandes editoras. Há ensaio erudito que pouca gente lê, mas há também uma série de suspense best-seller, e nos três casos recentes, estava lá um erro esquisito que teria sido pego em uma revisão mais atenta – ou que foi pego na revisão, mas empastelado no processo final de edição.
Falo como leitor desse tipo de situação, mas também tenho algumas informações “nas internas” por conhecer muita gente que trabalha em editoração. Muitas editoras grandes estão cortando custos justamente na produção que lapida um livro: revisores mal pagos, traduções idem, fase de preparação às vezes ignorada.
Sei que o mercado editorial sofre também por questões estruturais do momento – as práticas leoninas da Amazon, pouca bibliodiversidade, concorrência sem chances com um manancial de outras fontes de entretenimento e informação. Ao mesmo tempo, pelo que vejo da forma como se comunicam os seguidores de influenciadores literários nas redes, a própria forma literária em si não parece ser uma das preocupações de uma horda de jovens leitores fissurados na trama, mas ignorando por completo a outra parte da equação. Ainda assim, um livro hoje pode chegar a custar 10% de um salário-mínimo. E mesmo em versões online, ainda se encontram problemas sérios sem que o preço seja mais convidativo. Isso não vai melhorar com a IA, gente. Pensem bem no que vocês estão abdicando no processo.
Anda difícil a vida de todo mundo no Brasil. Que cada um tente a seu modo diminuir as dificuldades que tocam a cada qual. Sendo um leitor, deixo minha singela contribuição para nosso já combalido campo.
Hoje eu tentei como pude.
Foto da Capa: Freepik / Gerado por IA
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