Sorridente, com um jeito maroto de garoto levado e com uma panela na cabeça, o Menino Maluquinho tinha o olho maior do que a barriga, fogo no rabo, vento nos pés, umas pernas enormes (que davam para abraçar o mundo) e macaquinhos no sótão (embora nem soubesse o que significava macaquinho no sótão). Foi assim que ele marcou minha geração. E eu li tantas e tantas vezes “O Menino Maluquinho” que nem me arrisco a dizer quantas.
Se o Menino ainda apronta por aí, seu criador, Ziraldo, nos deixou no último sábado aos 91 anos. Escritor, autor de livros que mudaram a literatura infanto-juvenil, jornalista, pintor, editor. Um artista único, a começar pelo seu nome. Ou você já viu outra pessoa chamada Ziraldo andando por aí?
Em uma coluna que se dedicou tantas vezes à inclusão e diversidade, impossível não celebrar Ziraldo. Seja por seu Menino Maluquinho que cresceu fazendo todas as travessuras possíveis, foi um menino feliz e que virou um adulto legal de verdade, mostrando que a infância não pode nem deve ser limitada nem enquadrada, mesmo que o boletim traga um zero em comportamento. Afinal, a maior riqueza é ser respeitado em sua personalidade e ter liberdade e afeto.
Talvez minha identificação com o Menino Maluquinho passe pelo TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade). Afinal, toda criança TDAH sabe o que são macaquinhos no sótão e muitas se parecem com o menino, pois, afinal, sabem tudo sobre seu assunto de interesse, o chamado “hiperfoco”:
“Ele era muito sabido
ele sabia de tudo
a única coisa que ele não sabia
era como ficar quieto.”
Ziraldo ainda colocou seu nome no Pasquim, mítico jornal que dialogava com a contracultura e desafiava a censura no final da década de 1960 e no início dos 70. Apareceu em campanhas de governo, em gibis, suas criações foram musicadas e ganharam as telas de televisão e cinema. Muito à frente do seu tempo, seus livros já traziam uma simbiose entre texto e ilustrações, quando isso não era claro como hoje, quando os ilustradores são considerados coautores da obra.
Em campanha pelos Direitos Humanos, afirmou: TODOS TÊM DIREITO A SER DIFERENTES… SEM PRECONCEITOS! SEM DISCRIMINAÇÃO!
O Menino Maluquinho, sempre ele, perguntou: “Como é, então? É pra ser igual ou pra ser diferente?” Para ter como resposta: “O JUSTO É SER COMO VOCÊ É, MAS TER DIREITOS IGUAIS AOS DE TODO SER HUMANO”.
É preciso dizer que sua obra também sofreu críticas, como no livro “Menino Marrom”, que é contraposto a um “menino cor-de-rosa” para falar da diversidade, raça e infâncias diferentes. Como nos relata Marcella Franco, a escritora Ana Maria Gonçalves, autora do monumental “Um Defeito de Cor”, publicou em 2011 uma carta aberta a Ziraldo em que apontava os problemas que vê em “O Menino Marrom”, acusando-o de naturalizar o racismo e que o “texto nos ensina que é assim, sem ódio, que se doma e se educa para que cada um saiba o seu lugar, com docilidade e resignação”.
Como diz a jornalista Marcella Franco, “é interessante pensar que a partida do premiado autor possa encorajar a leitura contextualizada de Ziraldo, a exemplo do que se pode — e deve? — fazer com tantos autores. Responsáveis e educadores têm, agora, a oportunidade de apresentar às crianças a obra de Ziraldo e conduzir, com elas, o debate sobre pontos como os levantados por Ana Maria Gonçalves e outros críticos.”
Acredito que a grande obra de Ziraldo sobre a diversidade, que tanto celebrou, seja o livro “Flicts”, livro de estreia do autor, e publicado meses após o AI-5, na fase mais violenta da ditadura militar e que eu li, ainda criança, na escola.
O frágil, feio e aflito “Flicts” era uma cor muito rara e muito triste que “não tinha a força do Vermelho, não tinha a imensidão do Amarelo, nem a paz que tem o Azul”. Uma cor que não se encaixa em lugar algum. Não está na caixa de lápis de cor, no arco-íris ou em alguma bandeira. Solitária, ao tentar brincar com as cores do arco-íris ouve frases como “não tem lugar para você”, “somos uma grande família”, “temos um nome a zelar”, “não quebre uma tradição” e, por fim, “Por favor, não vá querer quebrar a ordem natural das coisas”.
“Flicts” segue sua viagem pelo mundo, procurando seu lugar. De tanto buscar, abandona nosso planeta. Mas o final do livro revela que “de perto, de pertinho, a Lua é flicts”.
A busca de um espaço para a diferença, a dificuldade de se encaixar em um mundo que já está posto e se vê como a ordem natural das coisas e as tantas frases que costumam ser ditas, principalmente por adultos, para aqueles que ousam ser diferentes, me lembram que a diversidade é “Flicts”. E como disse o poeta Carlos Drummond de Andrade, “Flicts” é maravilhoso e escapa a qualquer definição, simplesmente é.
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Foto da Capa: Reprodução de Redes Sociais