Primeiro na época do impeachment, e depois com as sucessivas vitórias de Trump e do Brexit, no cenário internacional, e de Jair Bolsonaro, no Brasil, provavelmente um dos discursos repetido de modo mais intenso para os integrantes da esquerda, cujas visões restaram derrotadas nos três casos, era a de que o campo “precisava fazer autocrítica”. Esse apelo meio vago foi lançado em artigos, em livros, em postagens nas redes sociais, seja pelos próprios esquerdistas perplexos com a maré montante da nova direita, seja pelos arrogantes vencedores que pareciam apontar que, sem uma autocrítica que transformasse a esquerda em algo mais parecido com a direita, a esquerda seria inviável a partir dali.
À esquerda, a autocrítica pedida já embutia uma crítica velada. Para muitos, chocados com o recém-descoberto caráter conservador da sociedade em que viviam, era necessário achar um culpado para as duras derrotas recentes, e foi aí que vimos a esquerda chamada “clássica” viver um de seus momentos mais deploráveis, com uma gente meio bolorenta e raivosa tributando o “afastamento das massas” ao fato de que os governos recentes de esquerda no Brasil haviam deixado de lado o foco da luta de classes em favor do avanço das “famigeradas pautas identitárias”. A política inteira de ascensão popular pelo consumo promovida pelos dois governos Lula e pelo goveno e meio de Dilma foi um fracasso, ela promoveu uma melhora material dos pobres sem lastro a não ser dobrando a aposta num desenvolvimentismo nacional à la Getúlio, resultando em endividamento geral da população e turbinando os czares da economia nacional, os mesmos que depois abraçariam a causa do impeachment e a de Bolsonaro. Mas, segundo alguns críticos, a culpa das derrotas da esquerda era porque muita gente estava indo à Parada Gay e à Marcha da Maconha.
Outras vozes, mesmo à esquerda (como Mark Lilla, por exemplo, em seu livro O Progressista de Ontem e o de Amanhã), ensaiavam uma outra explicação. Uma delas, o fato de que a realidade do mundo havia mudado, as necessidades do público também, e a esquerda contemporânea havia deixado de captar essas mudanças e de responder a elas – quando não havia, pior ainda, minimizado os sinais da opinião pública, de modo suicida:
“O Liberalismo americano no século XXI está em crise: uma crise de imaginação e de ambição da nossa parte, uma grande crise de adesão e confiança da parte do grande público. A maioria dos americanos deixou muito claro que já não responde às mensagens que estivemos transmitindo nas últimas décadas. E, mesmo quando votam em nossos candidatos, são cada vez mais hostis à nossa maneira de falar e escrever (especialmente a respeito deles), de argumentar e de fazer campanha, de governar”, escreve Lilla.
Termos
Claro, essa citação abre a necessidade de um parêntese, já que Falar ligeiramente de esquerda e direita nesse tipo de discussão é meio complicado porque os termos mudam de um lado para outro. Nos Estados Unidos, “liberal” é um termo usado em tom ofensivo por conservadores – que dizem não ao controle da economia na esfera pública e querem a preservação de instituições tradicionais e a restrição de costumes na esfera pessoal. É comum usar “liberal” para definir a ala política (na qual se perfilam muitos dos artistas e outros trabalhadores da indústria do entretenimento) ligada ao que convencionalmente vem se identificando como lutas da esquerda: a liberalização dos costumes, a assistência social universal e as políticas de inclusão de minorias.
No Brasil, “liberal” é um adjetivo usado em tom ofensivo por pessoas vinculadas à esquerda para definir a visão política convencionalmente associada a aspirações da direita: privatizações, liberalização do capital e desregulamentação da economia. Nem sempre isso deveria representar também restrições de comportamento na esfera privada, mas como o liberalismo brasileiro é um campo que não raro se confunde com o conservadorismo puro e simples, é muitas vezes isso o que acontece. Tanto que a turma do liberalismo econômico “puro” vem sequestrando para uso próprio o termo “libertário” para ver se muda o conceito associado à palavra. Fim do parêntese.
Para a direita vitoriosa, parte da argumentação era a mesma: a esquerda não sabia mais o que o mundo precisava. Claro, com a ascensão, dentro da direita, de um núcleo de extrema direita truculenta alimentada por delírios intelectuais de gente tosca, como o nosso exemplar nacionalíssimo Orvalho de Cavalo, a conclusão vinha acompanhada de uma “advertência moral”: a esquerda só havia triunfado antes porque enganava as pessoas tentando vender uma ideologia “que não deu certo em lugar nenhum do mundo”. Ao falar disso, os olavetes bozoloides gostavam de se referir ao “comunismo”, mas como, para essa gente ideologicamente confusa, qualquer coisa um pouquinho à esquerda já é comunismo, então o rótulo foi se expandindo para uma condenação em bloco da “esquerda” como um todo – o fato de que o nosso hoje desaparecido presidente da República usava indiscriminadamente em seu discurso “comunista”, “esquerdista”, “socialista” e “petista” como termos sinônimos e intercambiáveis é um exemplo disso.
A ascensão de Bolsonaro também produziu um mito interessante que a própria esquerda teve de tratar como possível verdade, mas cuja validade ainda carece de comprovação: a existência de uma “direita civilizada” que teria sido atropelada pela marcha da extrema direita contemporânea, mas, ao menos no caso do Brasil, esse chega-pra-lá só ocorreu depois que a direita assim chamada mais “tradicional” representada na figura do candidato derrotado em 2014, Aécio Neves, pôs em marcha um processo que desestabilizou o país e derrubou uma presidente por uma picuinha orçamentária que se tornou legalizada logo no mês seguinte. Temer seria apenas o interregno necessário para a eventual vitória dessa mesma direita mais adiante, mas, surpresa, ficou claro que a leitura do processo político feita por essa mesma direita foi ainda mais equivocada do que a da esquerda, dado que a ascensão de Bolsonaro e sua tropa de choque do mal simplesmente a deixou em segundo plano e reconfigurou o cenário de tal modo que a agulha política se moveu tanto para a direita que, por oposição, gente do PSDB virou esquerda e o PT virou o PCO.
O efeito Bolsonaro
E é aí que eu quero chegar com este texto. Agora, com o que temos visto nos últimos meses como resultado da gestão desumana dos últimos quatro anos, está na hora de alguém devolver a frase e apontar o óbvio: a direita precisa fazer autocrítica…
Parte da direita já consolidada tratou Bolsonaro como um evento normal da política, o surgimento de um novo ator que aproveita um anseio político “legítimo”. Com tanto tempo de esquerda no poder, seria mais ou menos esperado que houvesse uma contramaré de um pensamento mais alinhado com a direita clássica: austeridade fiscal, conservadorismo político etc. Só que, veja bem, a ideia básica central do conservadorismo é que há coisas que devem ser conservadas no status quo, fruto de um legado construído ao longo de gerações de uma história humana (se é uma concepção válida não está em discussão aqui. Particularmente acho que os conservadores são os caras que lutam para conservar aquilo que não teria sido conquistado se dependesse dos conservadores do passado). É um discurso que se tornou de um cinismo muito aberto e fácil quando a autointitulada “revolução conservadora” se aliou a um psicopata sem o menor apreço por nada do que deveria ser caro aos “conservadores”.
Bolsonaro banalizava a agressão e a violência a cada manifestação. Falava em “fuzilar” adversários, se dizia “especialista em matar”, declarava com a maior cara limpa que a ditadura matou menos do que deveria. Tornou a resposta atravessada a qualquer pergunta uma prática oficial de governo – ou seja, Bolsonaro desde o início representava a antipolítica, o delírio autoritário, até mesmo o desprezo pela via democrática (sua declaração “o que garante se alguém vive numa ditadura ou numa democracia são as forças armadas” parecia saída de um “pronunciamento” dos velhos tempos dos coronéis bananeiros da América Latina). Bolsonaro não era apenas uma alternativa política, era um desastre humanitário pronto para acontecer, o que só se comprovou quando, com a pandemia no auge, ele não conseguiu segurar seus instintos psicóticos sequer para fazer o jogo mais seguro de seguir o mínimo estabelecido pelos protocolos científicos e fingir que se importava. Dobrou a aposta no negacionismo antivax, atrasou a compra de vacinas, apostou numa imunidade de rebanho genocida que, nos poucos lugares em que foi atingida de fato, não representou imunidade alguma, mas novas variantes, como ocorreu em Manaus.
Curiosamente, essa aposta em ser a voz de um grupo de gente odiosa e mentecapta compensou para uma série de candidatos ao parlamento ainda alinhados às hostes bolsonaristas. Mandetta, o que mais próximo Bolsonaro teve de um ministro da saúde de fato e o modelo do que o próprio Bolsonaro poderia ter sido se quisesse, perdeu a eleição, enquanto o “sim senhor’ Pazuelo, o especialista em logística que não conseguia sequer despachar caixas de vacina, foi eleito, mostrando que esse é o tipo de política que serve para o parlamento, onde a noção de conjunto é a representação de correntes da sociedade, mas não funciona sempre para cargos majoritários.
Valores
Bolsonaro hoje é o líder de uma massa fanatizada que está fazendo de tudo para não reconhecer o resultado da eleição, e que já havia cruzado as fronteiras da prática de crimes muito antes do ataque terrorista realizado esta semana em Brasília (e que provavelmente foi só o ensaio para a baderna feia que virá no dia da posse). Mas ele só chegou lá porque, como o expoente da “onda de reação”, ele, mesmo com todas as suas precariedades e insânias, se tornou um recurso valioso para a direita voltar ao poder. Ao mesmo tempo, em nenhum momento se ouviu em lugar nenhum “preocupações do mercado” porque havia o canto da sereia de Paulo Guedes na economia – uma ciência que brinca de ser séria, mas que é meio que previsão de Mãe Dinah, como eu já comentei aqui mesmo na Sler. Parte das medidas econômicas do governo Bolsonaro são saudadas como bem-sucedidas, mostrando que sim, aposentar a Luta de Classes como um conceito ultrapassado é um grande erro. Você está dirigindo um Uber porque não consegue emprego, sua mãe teve a aposentadoria cancelada e seu filho não tem perspectiva de emprego, mas os empresários do agro estão lucrando com exportações e ainda enchendo a boca pra dizer que “alimentam o Brasil” – o que não é verdade, no máximo eles estão alimentando a China e deixando uns restos para os nacionais. Ou as novas leis trabalhistas tornaram mais fácil o empresário lucrar enquanto você patina.
Só que, veja, parte da mitológica direita “civilizada” ficou bem quietinha a maior parte do tempo enquanto Bolsonaro tinha lá o seu Posto Ipiranga governando para o grande Capital enquanto sistematicamente solapava o já combalido sistema institucional e tornava a oposição violenta e a agressão grotesca o novo modus operandi da política brasileira. O argumento econômico não pode ser desculpa para tudo quando se decide abraçar a antivida, o culto à morte, a violência como recurso. Dizer-se “conservador” e abraçar um agitador mesquinho no processo de destruição de toda a civilidade é cinismo, na melhor das hipóteses.
Logo, está na hora de a direita “clássica”, esta composta por partidos que sempre lotam o congresso de representantes e agem pelo puro toma lá dá cá para oferecer a tal “governabilidade”, fazer a SUA autocrítica sobre o resultado de seu arrivismo oportunista.