Com a inacreditável eleição de Donald Trump nos Estados Unidos (a primeira, não esta mais recente, embora ambas possam ser qualificadas de “inacreditáveis” até certo ponto), não foram poucas as distopias literárias resgatadas como profecia involuntária dos rumos dos Estados Unidos devido à ascensão ao poder de uma direita com pendores autoritários. Mesmo aqui no Brasil, muitos se apressaram em lembrar nas redes sociais de Orwell, de Margaret Atwood, até dos Simpsons – sendo que poucos parecem ter enfocado um grande exemplo nacional, Ignácio de Loyola Brandão e sua utopia delirante sobre uma nação que deu errado, Não Verás País Nenhum.
Não verás país nenhum narra sua história pelo ponto de vista de Souza, um homem entrando na terceira idade, que vive uma existência incolor e exerce uma atividade burocrática aparentemente vaga e inútil em um país que ultrapassou o limite do pesadelo. Sua vida está estagnada na dimensão pessoal e na profissional. Seu casamento com Adelaide, companheira de décadas, está abalado, entre outras coisas, pelo sentimento de passividade paralisante que acomete o cansado marido. Outrora um professor universitário de história, Souza foi cassado e denunciado como subversivo pelo conteúdo de suas aulas quando houve a ascensão do misterioso O Esquema, o conluio secreto autoritário que agora governa o país após um breve e fracassado ensaio de abertura política.
O furo
Em um dia aparentemente igual a todos, Souza percebe que há um furo na palma de sua mão, um buraco de bordas lisas e exatas que não dói, apenas coça ocasionalmente. Esse elemento fantástico será o ponto de partida para a desagregação do que resta da vida pacata e passiva a que Souza ainda se apegava, mesmo com o país desabando à sua volta. Ele abandona o serviço várias tardes sem motivo, começa a circular a pé por zonas que não tem autorização de passar, vê-se cada vez mais perplexo com o furo, que pode ser resultado de uma das pestes que grassam o país, mas não faz esforço algum para ir ao médico verificar – uma consulta só serviria para colocá-lo no radar do sistema autoritário e talvez ser aposentado de forma permanente e talvez desagradável. A mulher a certa altura o abandona, perplexa pelo seu comportamento errático, e ele é convencido por um sobrinho, integrante do chamado “Novo Exército” e, portanto, com um cargo no governo, a acolher em seu apartamento, agora grande demais para uma pessoa só, alguns homens trazidos das zonas proibidas fora do perímetro autorizado da cidade. Homens com um propósito cada vez mais confuso para o personagem. Seriam guerrilheiros, criminosos, trabalhadores clandestinos?
Aqui é interessante lembrar que este livro foi publicado em 1981, ou seja, quando, apesar de já haver um certo distensionamento em algumas instâncias, inclusive com a anistia política aos dissidentes, a ditadura militar ainda estava no comando do país, embora houvesse no ar uma promessa de fim do autoritarismo num futuro próximo. O que Loyola imagina aqui não é o esperado fim da ditadura militar, mas sua manutenção perpétua ao longo de várias fases históricas que correspondem com assombrosa coincidência com as fases da política real do país, se analisadas em retrospecto quatro décadas depois.
No livro, a uma etapa de liberação política mais de nome do que de fato (e que a narrativa chama de “Os abertos oitenta”), segue-se uma era de corrupção desenfreada chamada de A Era da Grande Locupletação, em que a classe política que sucedeu à ditadura rateia o país entre si e procede a um saque sem freios. Mesmo denunciada pela imprensa, essa classe se salva criando O Esquema, uma nova ditadura capitaneada por um exército que se diz renovado e que, para vender a ideia de que a corrupção acabou, passa a perseguir a imprensa pela sua obsessão com “más notícias”. Também os cientistas, que alertam para o custo ambiental desastroso das medidas do novo governo, passam a ser desacreditados como disseminadores de paranoia, os que não se refugiam no exterior são cassados e perseguidos.
Sim, se tivesse sido escrito nos dias de hoje, ou mais especificamente há uns dois ou três anos, Não Verás País Nenhum seria considerado uma sátira bem pouco sutil.
Loyola
Nascido em Araraquara, em 1936, Ignácio de Loyola Brandão já havia publicado três romances antes deste e um bom número de livros de contos. Em especial, as narrativas longas anteriores Zero e Dentes ao Sol e o livro de contos Cadeiras Proibidas já antecipavam seus procedimentos narrativos mais comuns, como o uso de uma prosa ágil e acelerada, em que se misturam referências eruditas e da cultura de massa, ou a costura de situações em que elementos contrabandeados de fontes na época consideradas menos “nobres”, como a Ficção Científica e o jornalismo, se mesclam a um tratamento enviesado do fantástico, então em evidência devido à literatura do boom latino-americano. Não Verás País Nenhum é um livro que a seu modo retoma, ainda que de modo mais tradicional, algo que Loyola já havia feito no romance anterior Zero, também uma história passada no pano de fundo de um regime militar tratado como alegoria. Publicado em 1976, foi proibido pela censura no ano seguinte – juntamente, aliás, com Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca.
Mas Zero era muito mais ousado e polifônico do ponto de vista formal, fragmentando a narrativa e os pontos de vista com o uso de elementos “externos”, como notícias de jornal, documentos oficiais, chamadas de programas de rádio. A narrativa de Não Verás País Nenhum, embora ainda episódica e apresentada em capítulos curtos, é mais concentrada na figura de Souza e na progressiva desagregação de sua vida à medida que o furo em sua mão, que pode ou não ser parte de uma peste que vem grassando no país, o leva a rejeitar alguns comportamentos passivos aos quais havia se aferrado por puro medo. Quase quatro décadas depois, Loyola daria continuidade a essa série de narrativas apocalíticas muito pessoais com Desta Terra Nada vai Sobrar, a não ser o Vento que Sopra sobre ela, publicado em 2018.
Não Verás Pais Nenhum tira seu título de um poema ufanista chamado A Pátria, escrito por Olavo Bilac, e que era empurrado goela abaixo da juventude estudantil na escola e no rádio durante a ditadura militar. Como a própria proposta do livro é a de trabalhar o lado avesso do ufanismo nacionalista da época da ditadura, também a inversão da frase é um toque de gênio que anuncia as intenções do livro de forma clara e inequívoca.
O mundo ficcional
Como é comum em muitas criações literárias distópicas, a condução da narrativa precisa também se dividir com a construção do panorama ficcional em que a história se desenrola, e assim muito do que lemos se concentra na construção do universo e da realidade em que Souza vive em algum ponto indeterminado no futuro que, feitas as contas, poderia muito bem ser esta década em que vivemos agora, embora isso não seja dito no livro.
Após uma sucessão de crises e turbulências políticas, Souza vive em uma São Paulo separada em zonas cuja circulação é dificultada pela ação idiossincrática de fiscais fazendo valer leis de transporte que parecem mudar de um dia para o outro. O calor é insuportável, há uma crise ambiental causada pela desertificação irreversível da Amazônia, os produtos naturais são escassos e praticamente todo o alimento foi substituído por alternativas sintéticas produzidas em laboratório chamadas “factícias” – sempre com um gosto entre plástico e papelão. A segurança é mantida com mão de ferro por duas corporações que parecem competir entre si, a dos militares do Novo Exército, que formam a base do governo autoritário, e a milícia dos “civiltares”, formada pelas antigas polícias civil e militar.
A única ciência ainda financiada é a do governo, para a produção de alternativas ao colapso ambiental que levou à escassez de combustível e de alimentos. Não há transparência, pelo contrário, os integrantes do governo são mantidos no anonimato e na obscuridade sob a desculpa de se protegerem de atentados. Os terraços dos edifícios estão todos trancados para evitar a ação de franco-atiradores. Quando a Amazônia foi inteiramente desmatada, o governo ainda consegue transformar o caso em propaganda ufanista, gabando-se do fato de que o Brasil havia conseguido produzir o maior deserto do mundo, ultrapassando o Saara. Há bolsões de pobreza fora do ambiente sitiado das cidades. E embora até a água seja racionada e distribuída por fichas, algumas redomas geodésicas em bairros nobres de circulação proibida ainda simulam as antigas condições climáticas apenas para os poucos privilegiados, como os políticos ladrões da era da grande roubalheira – que o governo insiste que nunca aconteceu, dado que todas as menções a isso nos jornais e livros de história foram apagadas.
Profético
Pessimista e ao mesmo tempo satírico, o livro de Ignácio de Loyola Brandão tem como grande mérito o equilíbrio em uma única obra de vários registros: a comédia, a sátira, o comentário melancólico e triste sobre o desperdício e a crueldade que o colapso do país como experimento produzem. Mais do que uma previsão certeira para o futuro, é um alerta surpreendentemente preciso sobre caminhos que o Brasil insiste em cortejar no presente.
Diz o ditado que ninguém é profeta na própria terra. Mas com este livro, Ignácio de Loyola Brandão pode muito bem ter se aproximado disso.
Foto da Capa: Ignácio de Loyola Brandão / Feira de Frankfurt 2013
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