Na década de 1970, mais precisamente em 07 de novembro de 1971, tomei a primeira Comunhão na paróquia do Senhor Bom Jesus, em Taquara/RS. Dois anos além, fiz a Confirmação. O meu pai, José Inácio, nascido em Caibaté na Região das Missões, foi seminarista na juventude, por isso nossa formação católica atuante na infância e adolescência. Sem vocação para o sacerdócio, ele formou com minha mãe, Marlise, uma família com 5 filhos. Eu fui a segunda da prole. A mãe era evangélica de batismo, nascida em Igrejinha, e pelo matrimônio, nas diretrizes da época, se tornou católica.
Bom, naquela mesma década eu já estudava no colégio Santa Teresinha para cursar o técnico de Nutrição e Dietética. Muitas vezes, nem o passar dos anos explica o porquê de alguns dos direcionamentos da vida, mas também esses nos trouxeram até os dias de hoje. O Santa, carinhosamente chamado pelos alunos, tem como mantenedora a Congregação Notre Dame, da Ordem herdada de Santa Júlia Billiart, fundada em Coesfeld, na Alemanha. E foi lá, pelos anos de 1975 e 76, que a irmã Maria Igna, religiosa da Congregação, responsável coordenadora da época pela formação das crianças na catequese, me chamou certo dia na sala de aula com o convite inesperado para lecionar catecismo para as crianças. Fui para casa na dúvida. Adolescente (e libriana) sempre tem dúvidas! Naquele momento eram do tipo ‘Vou saber? Vou transmitir aquilo que a confiança da irmã me depositava? É esse caminho que quero? O que eu vou inspirar? Eu sei dar aula? Parecia-me que ser professora, como minha mãe o era, significava ser um detentor de muito conhecimento e ter um espírito e essência meio mágicos, que eu não entendia ter. Mas, dizem que de médico, de professor e de louco todos temos um pouco. Para os dois primeiros, é estudar bastante e ter o tal dom para fazer a diferença. Para o terceiro, creio que basta a agitação e os desequilíbrios da vida.
Fui catequista até iniciar a faculdade e lembro como se fosse mês passado da maioria dos momentos vividos nas salas da catequese. Anos depois, novamente no Santa, mas do outro lado da ‘mesa’, lecionei para turmas de 5ª à 8ª e uma turma do Ensino Médio até 1995. Ainda não sei se nasci com alma de profe, ou fui aprendendo a sê-la. Tinha a ideia naquela época de que eu era uma inspiradora e tinha feito a diferença. Ou será que não? Anos depois, em Três Coroas, fui voluntária na Escola Municipal Águas Brancas, realizando atividades de inglês básico para as crianças do jardim até a quinta série, e um projeto de reorganização da biblioteca do educandário, assim como de um programa de leitura com as crianças. Acompanhei e vi as transformações dessa profissão através dos tempos, das evoluções da tecnologia, dos redirecionamentos do ser humano, das relações professor/aluno que mudam continuamente, infelizmente nem sempre para melhor. No mestrado em Educação, na linha dos Estudos Culturais, estudei e busquei respostas dessas construções, que continuamente evoluem e se (re)direcionam através dos tempos. Os livros e estudiosos nos dizem muitas coisas, muitos direcionamentos sobre ser professor e a maneira como se insere na sociedade. Quem sabe a resposta esteja no passado? A docência é construção ou inspiração? Vamos aos livros.
Como pensar na profissão do(a) professor(a) de hoje? Não há como distanciá-la do discurso que legitima o docente como preparador(a) do futuro profissional. Ou, ainda, que o professor está incluído no processo que tornou a educação pertinente para o desenvolvimento do País. Mas, foi sempre assim? Tudo tem sua história distante. Júlia Varella e Fernando Alvarez-Úria apresentam a docência como sendo uma invenção da burguesia para civilizar os filhos dos trabalhadores para o trabalho manual, como um processo de disciplinarização através da escola, onde, segundo eles, as histórias exemplares, o recitar em voz alta, a caligrafia, o trabalho escolar ‘são a bigorna sobre a qual o professor forma o exército do trabalho’.
Civilizar para o trabalho, então, vem de longe e é tema intrínseco em notícias frequentes sobre ensino profissionalizante, técnico, rural, entre outros. Não é um assunto novo. Realmente é coisa que vem do passado, nítida na observação detalhada sobre o que se estudou (e estuda) da atividade laboral intrínseca nos livros e conteúdos de História já no Ensino Fundamental. Nas séries seguintes, a atividade laboral está incorporada aos conteúdos dos assuntos do mercantilismo, ou à nova ordem com a era industrial, ou no êxodo rural, por exemplo. E é aí onde o caráter inventado do formato da escolarização pelas políticas públicas, com o professor e as transformações da evolução da profissão docente, se entrelaçam em práticas dirigidas de construção para a formação de determinados indivíduos para que se transformem em “capital humano” para a sociedade industrial. Então, ao pensar nesses aspectos, nunca o professor foi idealizado para inspirar? Ou seja, é idealizado para gerenciar o “capital humano”? Sílvio Costa diz que capital humano se refere aos atributos humanos em um conjunto de conhecimentos, habilidades e capacidades comunicativas e de cálculo específicas que são requeridas para participar do processo produtivo. Isso nos leva a pensar em alguns escritos de Michel Foucault, e pensar na função do professor e suas práticas, agenciando e produzindo o homo economicus ou o capital humano, que para o filósofo e historiador o “trabalho comporta um capital, isto é, uma aptidão, uma competência”. E, sob essa ótica, podemos pensar que as competências e habilidades de um indivíduo produzidas na escola constituem o seu capital e, portanto, têm valor de troca.
Tudo isso nos leva a pensar no exercício da docência, na disciplinarização de Foucault, e na fabricação de certos tipos de pessoas para o trabalho e como, por muito tempo – mais especificamente os dois últimos séculos que marcaram a época moderna – os meios de transmissão de saberes exercidos foram pouco a pouco sendo regulados para esse fim. As escolas foram sendo implantadas com professores devidamente preparados para conduzi-las, deixando de lado o mestre-escola – aquele (a) que não possuía escolarização habilitante para lecionar, aquelas regras e maneiras sobre o que ensinar, como e para quem. Assim, nos contam os livros que os novos estados docentes foram se consolidando, a instrução primária passou a ter um sistema de métodos estabelecendo, inclusive, a aprovação ou proibição de livros para serem utilizados nas escolas. Foi se afirmando que a diversidade já não era bem-vinda, pois não ratificava as acepções políticas para a administração social que assegurasse a ideia desenvolvimentista moderna. Um juízo, como nos esclarece Michael Foucault, em Vigiar e Punir, de um processo de organização das populações para torná-las mais produtivas.
A finalidade, então, parece não ser apenas – como não é – difundir conhecimento nem inspirar. Perde-se o encanto de ser o inspirador, não é? Ou seja, uma forma de governo ou governamentalidade, como diz Foucault, com táticas específicas de poder que têm por alvo principal a população. Assim, a governamentalidade busca programar as atividades, os comportamentos e os pensamentos dos indivíduos através de instituições como a escola, induzindo os indivíduos a perceberem-se como um tipo específico de sujeito, de capital humano. A noção de governo não como instituição de Estado, mas práticas para gerir as ações que sejam produtivas na sociedade. Na perspectiva da governamentalidade e da produção do capital humano, é possível pensar no papel do professor (através de suas práticas disciplinares) para a fabricação de subjetividades desejáveis em função do capitalismo.
Pois bem, sob essa ótica, ao perceber que vivemos em um contexto onde a sociedade se apresenta regulada por proposições econômicas e que essas se tornam princípios normativos de toda a sociedade, é possível entender a escola como meio que fabrica (ou pretende), através de práticas de condução da humanidade para o trabalho. E o trabalho do professor é, assim, parte do sistema educacional que busca explorar e confirmar a adoção e reconhecimento de posições socialmente aceitáveis ou requeridas historicamente. Aqui no Brasil, conforme a jornalista Heloisa Villela, é no início do século XIX – reinado de D. João VI – que se inicia o controle progressivo do Estado sobre a educação formal. Esse processo estava engajado com a contratação, normatização e profissionalização do docente, do professor. Assim, ao iniciar uma nova maneira de conduzir os indivíduos, profissionalizou-se o(a) professor(a). Ele(a) é peça-chave entre o povo e o que se espera desse. O (a) professor (a) seria um (a) missionário (a) com vocação capaz de, como ressalta bem o estudioso Mariano Enguita, ‘renunciar à ambição econômica em favor de uma vocação social’.
No século XIX, então, consolidou-se a ideia de que o professor não deveria questionar salários. Por ser uma vocação sublime, o fator econômico não retribui ao professor por contribuir na formação desses novos sujeitos. Isso, porém, só lhe dá a condição de sacerdote sobre a questão salarial. No mais, estará sujeito à constante vigilância, porque para sua certificação ser concedida deverá corresponder às ordens e funções, O magistério figura como um sacerdócio que atingiu a funcionarização. Procedimento fruto da interdependência de subordinação à autoridade do Estado e da tentativa de autonomia de um novo estatuto sócio-profissional; um processo forjado, que também garantia ao Estado o controle da instituição escolar. O docente, então, torna-se o profissional do Estado para formar uma sociedade ‘civilizada’. E o professor primário é preparado para que se ajuste aos novos tempos de industrialização. Ora, a presença do mercado mundial já direcionava, a partir de uma visão capitalista, o ensino como uma prática, um meio para a fabricação de indivíduos direcionado para a formação do capital humano. Capital humano que precisava ser adequado às ideias de industrialização, colocando o homem como um investimento para o trabalho. Assim, difundia-se uma conduta universal para encaminhar a humanidade – através do professor. Seriam geridas as populações e se poderia promover a solução para problemas como a constituição da ética, da força de trabalho e da criminalidade, pois os dirigentes também tinham a criminalidade à falta de instrução.
Dessa forma, trabalho e educação constituíam-se a partir de uma relação de custo-benefício, e o professor enquadrava-se como timoneiro ao direcionar os indivíduos para um futuro de progresso mercadológico. Esse timoneiro, porém, precisava ser ‘ensinado’. Ele tinha de cumprir os propósitos políticos, construtivos e constitutivos. A solução para o cumprimento de tais propósitos são as Escolas Normais. Os livros nos contam que, no Brasil, a Escola de Niterói – capital da província fluminense – foi, na década de 30 do século XIX, a primeira a iniciar suas atividades de padronização dos docentes. Apesar de importante na formação de professores, ficava distante das altas classes, pois não se situava na Corte. A Corte só foi ter a sua escola normal pública 46 anos depois. O objetivo da implementação das escolas normais estava justamente em formar agentes para esse processo, onde um candidato pretendente à formação docente dependerá de critérios como nacionalidade, idade e boa moral. Essa ‘boa morigeração’ – ter boa moral e conduta – era classificada pela lei, em que no 6º artigo exigia, entre outros itens, um atestado de boa conduta expedido pelo juiz de paz.
Do final do século XIX para cá, a feminização do magistério se expande com o avanço do campo educacional, fato que foi associado à queda do prestígio da profissão e à baixa remuneração. Na realidade, o discurso para que as mulheres assumissem o magistério de escolas femininas se baseava na ideia de que se deveria construir, na visão feminina, a retenção de resgatadoras morais da sociedade. Isso reforça a naturalidade do lugar feminino vinculado ao âmbito doméstico e ao maternal. Pode-se, aqui, retomar a questão da formação da classificação e hierarquização de aluno ou aluna, em que eram operadas subjetividades quanto ao trabalho feminino e ao masculino. As meninas precisavam ser disciplinadas e orientadas para a formação familiar, casamento e maternidade. Uma ‘trabalhadora’ com funções para o lar, mantendo, assim, as diretrizes sociais com alicerce na família patriarcal.
Então, parece que a única razão propulsora do professor é colocar o homem a serviço; sempre foi e continua sendo. Atentemos, inicialmente, para as grandes transformações do final do século XIX e início do século XX que propiciaram novas invenções. Essas transformações necessitavam ser administradas, manipuladas, organizadas, na medida em que os indivíduos até então trabalhavam somente na terra, ou eram artesãos sem qualquer especialização e orientação reguladora de tempo e espaço além do tempo, do sol e da chuva que rege os campos de plantação. As fábricas, as ferrovias, as engenhosas máquinas surgiam atreladas à necessidade de organizar e dirigir os homens como força de trabalho.
Ficava evidente a necessidade de incorporar as pessoas para as mudanças do trabalho que, acostumadas à produção familiar e artesanal, agora passavam por um processo de enclausuramento dentro de oficinas e fábricas. O tempo começa a ser programado com rigidez e é relacionado com a demarcação de espaços, como nos locais de trabalho. Os indivíduos precisavam ser adestrados para isso. Nesse momento da História, como nos relata Sigmund Bauman, o “capital, administração e trabalho estavam, para o bem e para o mal, condenados a ficar juntos por muito tempo, talvez para sempre – amarrados pela combinação de fábricas enormes, maquinaria pesada e força de trabalho maciça”. Esse tipo de trabalho delineava uma nova ordem bem direcionada e, segundo o filósofo e sociólogo polonês, “não mais o sedimento de vagar sem objetivo do destino […], mas produto de pensamento e ação racionais. Ao descobrir que o trabalho era fonte de riqueza, a razão tinha de buscar utilizar e explorar essa fonte de modo mais eficiente do que nunca”. Então, na sociedade da disciplina, era preciso que os indivíduos aprendessem a executar, servir comandos e ter a obediência necessária com determinação, para servir aos propósitos desenvolvimentistas e sociais; eles precisavam ser preparados para ter uma vida individual, uma identidade de trabalhador disciplinado. Como se produzem indivíduos assim?
Com efeito, a escola e o professor se apresentavam como meios para forjar as práticas disciplinares educativas às crianças (futuras trabalhadoras) na medida em que reforçavam, formavam, conduziam a instituição da disciplina aos indivíduos e seus corpos. Ao entendermos as transformações para criar sujeitos de corpos dóceis, podemos visualizar como se forja a extração da força de trabalho, incidindo sobre um corpo, imbricado numa disciplina de conduta que seja produtiva e econômica. Mas, para esse ensinamento disciplinador ser efetivo, necessitava ocorrer de forma branda, sem violência. Nada melhor para isso do que a disciplina escolar praticada pelo professor. Isso porque o terror destruía – e ainda destrói – e a disciplina compunha (e compõe) o processo capaz de produzir em tempo e espaço uma conduta desejável e harmoniosa para a produção de bens e serviços. É, inclusive, Foucault que pergunta: “por que nas escolas não se ensina somente a ler, mas se obriga as pessoas a lavar as mãos?”. A consequência disso, em se tratando da escola, é exatamente a fabricação de subjetividades em crianças e jovens (através das práticas de disciplina) para futuras posturas profissionais, permitindo sua inclusão, comunicação e convivência produtiva na sociedade. Apesar da disciplinarização vivenciada e efetivada pelo professor ter cumprido seu propósito no campo de trabalho do mundo Moderno, as transformações no modo de vida social e cultural atuais colocam em cheque esse processo. A troca do longo prazo, fixidez e linearidade, pelo curto prazo, instabilidade e flexibilidade exigem uma constante reorganização dos sujeitos. Tal medida de deslocamento coloca progressivamente o eixo econômico dirigindo-se da produção para a circulação, para os serviços. Na mesma medida, a escola e suas práticas disciplinares – outrora tão positivas, imprimindo nos sujeitos certas condutas o mais permanentemente possível -, já não bastam ao mundo contemporâneo, à sua desordenação e aos desvios. Passaram, como nos diz Bauman, da “modernidade sólida” e sua disciplina alicerçada na Produção em Massa, para a “modernidade líquida”, que é operada em pequena escala, com diversificação de produtos, com foco na Produção Enxuta. Essas novas e constantes contingências e rearranjos nas formas de pensar e de organizar o trabalho processam, então, a necessidade de trabalhadores capacitados a executar mais de uma função nos cenários de curto prazo, com respostas ágeis às demandas de consumo.
Tais (re)arranjos alteraram o papel do trabalhador que precisou inserir-se como organizador individual da própria tarefa. Essa adaptação do modelo estável e linear para o flexível exigiu um comportamento humano adaptável às contingências. Nesse cenário, surge a ideia do trabalhador empreendedor: ao articularmos toda a trajetória de formação da profissão do docente, pode-se perceber como ele foi fabricado, incorporado, vigiado para ser um disciplinador e tornar a sociedade produtiva. Ou seja, pessoas com habilidades e competências para executar, servir comandos e ter a obediência necessária para serem produtivas no mundo capitalista.
Portanto, nessa linha de pensamento, a única razão propulsora da existência do professor é colocar o homem a serviço… Ele foi e é o responsável prático para ensinar os indivíduos a regular o tempo programado com rigidez, acoplado aos espaços. A finalidade da criação da profissão docente, então, não era primordialmente – como não é – difundir conhecimento a fim de levar o homem à liberdade. Mas sim, conduzir o ser humano à disciplina, num processo que se resume em transformar, moldar os comportamentos, individualizando e inserindo cada sujeito no contexto capitalista. Onde fica então aquela ideia de inspirar?
Denise Preussler dos Santos - Jornalista (Unisinos), com mais de 180 artigos publicados em jornais do Interior. Tem publicações na Revista Teias, Labrys, Revistas Eletrônicas Puc, Revista de Educação, Linguagem e Literatura-UEG Inhumas. É Mestra em Educação(Ulbra) e Terapeuta Integrativa. Atualmente cursa Nutrição (Uniasselvi).
Todos os textos da Zona Livre estão AQUI.
Foto da Capa: Wilson Dias / Agência Brasil