Acordo e o primeiro que penso é: será que eu vou ter dor de cabeça hoje? Essa é a minha personagem neurótica, veio com uma enxaqueca horrível que comecei a ter há vários anos. Não sei bem como esse personagem se formou, mas acho que foi uma mistura de mandatos sociais e familiares com um feminismo meio bizarro. Enfim, logo cedo ela aparece para me atormentar.
Aí ligo o computador e começa meu personagem corporativo. Na teoria ele deveria me acompanhar de segunda a sexta das 9 às 18h, mas na real ele trabalha direto e não lhe pagam horas extras por isso. Esse personagem também é meio bizarro, mas paga minhas contas. Ele fala bonito em reuniões, se comporta bem dentro dos parâmetros estabelecidos pela firma. De vez em quando dá um piripaque e se junta com minha personagem neurótica. Então começa a doer tudo e não tenho jeito: tenho que parar a cena para ir à cama ou ao hospital.
Outra personagem que eu gosto muito é a utópica. À primeira vista parece uma personagem totalmente secundária, mas não! Ela é o motor de toda a trama. A personagem neurótica quer sempre se amigar com esse personagem, mas no fundo elas não têm nenhuma conexão. O corporativo tentou também vir com uma história de trabalhar do que ama, mas isso é uma utopia muito da barata. A personagem utópica aspira a algo muito maior.
Recentemente, coisa de alguns anos para cá, veio uma personagem melancólica. Bem estranho, baixo astral total. Eu que venho de um país tropical, abençoado por deus, aprendi que no carnaval tudo se resolve, mas essa personagem já tem seus carnavais, e nada! Lembrei de uma bossa que diz que ter uma tristeza e melancolia que não sai de mim, então acho que essa personagem veio para ficar.
Diferente da personagem melancólica, a personagem tristeza já está faz várias temporadas. Depois de alguns anos consigo relacionar essa personagem com os ciclos hormonais, então já sei em que momento ele provavelmente vai aparecer. Personagem totalmente previsível. Mas as vezes também aparece do nada, com uma superpotência, diálogos fortes.
E, obviamente, também já faz várias temporadas, tem a personagem felicidade. Essa personagem é super fofo, tenta se amigar com todos as outras personagens. É como aquelas atrizes de Hollywood loiras e magras que acham que todo mundo quer ser amiga dela. Mas ultimamente nem todo mundo se dá bem com a felicidade, e ela tem saído de cena.
Tem outra personagem digna de análise, que é o ócio. Cara complexo. Ele vem às vezes com uma amiga que se chama culpa, e eu acho esse casal bizarríssimo. Uma vez o ócio veio com a utopia, e não deu certo, acredita? Com a personagem corporativa parece que não, mas às vezes eles se encontram a escondidas!
E nessa última temporada apareceram duas personagens muito legais: a poético e a cronista. Elas são superamigas, não aparecem juntas em cena, mas sempre estão em contatos. O ócio ficou tentando entrosar, mas até agora nada.
Vamos ver o que nos espera nas próximas temporadas dessa série tão cotidiana, corriqueira, comum e costumeira.
*Carolina Murgi. Sou contadora, no trabalho conto números dos outros, aqui conto minhas histórias.
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