A cada vez que vem a público uma notícia como a da ex-jogadora de vôlei que “saiu de relho” atrás de um entregador, ou da professora que ficou de sutiã e calcinha no supermercado para mostrar que não estava escondendo nenhum produto sob as roupas, tenho uma sensação ruim que é resgatada nos recônditos de minha alma.
E penso nisso sendo uma mulher negra de muitos privilégios, que se resumem em ter tido comida e educação, além de carinho. Vivemos muitas dificuldades na infância, mas a gente não sabia, não se dava conta. Talvez por superproteção da minha mãe e traumas velados do meu pai.
Essas duas linhas de comportamento de nossos pais geraram uma criação peculiar: ou a gente não se via como negro, naquelas de “somos todos iguais”, pregada em silêncio pela mãe, ou a gente vivia na linha, para não chamar atenção, para não ser descoberto e incriminado — mentoria vinda do pai. Em ambos os casos, trabalhamos a nossa própria invisibilidade.
O fato é que, inconscientemente ou não, sabíamos que tínhamos de ser limpinhos, educados, penteados, não chamar atenção e não fazer feio em nenhuma atividade, fosse ela qual fosse. Na escola, na vida. Difícil.
Houve um dia em que estávamos brincando no que seria uma calçada… No subúrbio, onde morávamos, na boca da zona sul de Porto Alegre, não havia exatamente calçadas. Pavimentação, fosse qual fosse, era uma promessa do governo militar — sim, eu cresci na ditadura — para o fim do ano. Saí de casa quando tinha pouco mais de 20 anos. Até então, a pavimentação da rua de minha infância continuava sendo uma promessa para o fim do ano… Ingenuamente, lá no fundinho, seguíamos acreditando, embora não perdêssemos a chance para uma piada particular da família que, diante de algo improvável, citamos o jargão: agora no fim do ano.
Bom, retomando a “calçada”: estávamos brincando ali, em frente de casa, e, como éramos muitos — talvez quatro ou cinco dos sete irmãos —, a passagem ficou um pouco obstruída. Uma vizinha, jovem, mas já adulta, voltava do trabalho e ficou incomodada em ter de desviar da gente, da corda ou da bola ou do taco para passar. Ela era tão moderna! Eu a admirava tanto pelos cabelos longos, pelos óculos de sol, as roupas e tal. Parecia alguém saído da TV ou da revista Manchete, nossas grandes referências de sonhos e elegância. Pois a querida desviou de um, de outro, e no terceiro resmungou, protestou, e a gente ouviu: “Sai, negro sujo”.
Talvez tenha sido a primeira vez que meu mundo caiu. Nós éramos crianças! Negras! Crianças!
Não entrava em lugar algum da minha cabeça o porquê de sermos consideradas sujas. Por que “negro sujo” falado assim com raiva? Não podia ser pela brincadeira na calçada. Qual era a mágoa daquela mulher? De onde vem isso?
Foram exatamente as mesmas indagações que me vieram ao ver a tal Sandra, em seu nobre bairro de São Conrado, furiosa com a presença de negros entregadores em “sua” calçada. Por que isso? E se, em vez de uma guia de cachorro, ela tivesse acesso a um relho, um chicote de verdade?
Se o entregador quisesse ou pudesse revidar, ela, mesmo com seu histórico de atleta, não teria chance. Mas imagine se o negro — sujo? — desse um empurrão mais forte na criatura ensandecida. Se a contra-atacasse com um tapa?
A gente entrou em casa, a brincadeira acabou, mas ficou ecoando em nossas mentes aquele “negro sujo” injusto e dolorido. Nós, que éramos tão estimados no bairro, filhos de professora e de enfermeiro — que meu pai não era, mas assim era chamado. Duas profissões de status no subúrbio, que nos davam salvo-conduto e elogios por onde passávamos. Naquele fim de tarde, de nada serviu. Fomos reduzidos, atacados, difamados sem razão… ou com razão! Mas qual seria ela? Essa pessoa havia estudado, tinha boas oportunidades, era um exemplo pra todos. Talvez como a tal Sandra de São Conrado, que é nutricionista, que foi atleta, que deve ter seus amigos e fãs. Porém, naqueles momentos, Sandra e minha vizinha eram apenas pessoas brancas que viram seus espaços invadidos por negros. E veio a Casa Grande contra a Senzala. Como ousam estar no mesmo espaço? Como ousam trabalhar e receber por isso? Como ousam rir e gargalhar na calçada? Como ousam ser felizes?
Tantos anos depois, a cena é resgatada, e eu sigo sem respostas definidas. Porém, tenho bem presente a mesma dor. Queria que fosse vergonha. Queria que fosse alheia. Mas é a dor que marca boa parte do povo negro, caros leitores, caros amigos. Não é mimimi, sabe?
Pior do que ver o entregador Max “apanhando de relho” em 2023, o que mais remexeu minhas entranhas neste episódio foi vê-lo, dias depois, saindo da delegacia com o nó desatado. Aquele nó que talvez eu e muitos negros e negras deste Brasil tenhamos mantido preso desde a infância. Ele não segurou. Tava ali, feito uma criança, soluçando nos braços da mãe, que, como fazem as mães, estava lá, apoiando o filho. Que cena!
Obrigada, Max. Por ter chorado. Por não ter atacado a Sandra. Por ter feito a denúncia. Por saber que você está certo.
Obrigada, professora Isabel Oliveira, por ter tirado a roupa. Não precisava, né? É o que dizem alguns por aí. Não, não precisava, querida. Você podia ter seguido na humilhação de ser seguida dentro do Atacadão pura e simplesmente por ser negra. Podia ter se irritado com a ação do segurança e tê-lo interpelado. Quem sabe ele te derrubasse ou te arrastasse para fora e te cortasse a respiração com o joelho, né? Para que tirar a roupa, professora? Que é isso!
Eu segurei meu choro por muitos anos. Eu mantive a minha roupa e o nó na garganta por tanto tempo. Por isso eu agradeço sinceramente a todos esses Maxes e Isabéis que enfrentam, afrontam e mudam o mundo. É assim que a gente consegue seguir respirando. Obrigada.
Revisão: Rodrigo Bittencourt