Chega um momento em que a dor se transforma em cansaço. Não é mais aquele grito de raiva ou o fogo que consome. É um cansaço profundo, sabe? Tipo saco cheio. Todo ano, novembro chega com esse foco no povo negro. É exaustivo. Parece repetitivo, parece sempre insuficiente. Mas, quer saber? Ainda é necessário. E não é por nós, negros. A maioria de nós já entende quem é, de onde veio, o que carrega. Mesmo que nem todos, porque o racismo estrutural é tão forte que rouba até a nossa relação com a própria identidade. Mas essa conversa… é para quem ainda não entendeu. Para quem ainda acha que racismo é só um “exagero”.
Cresci em uma casa cheia de histórias. Minha mãe, meu pai, meus avós, todos com raízes misturadas: negra, indígena, europeia. Um caldeirão que é o Brasil, né? Mas, sabe o que é louco? A herança negra, a cultura negra, nunca era mencionada. Era como se não existisse. Eu brincava, assistia TV, lia livros, ia ao cinema… E os heróis, as personalidades que via? Todos brancos. A cultura dominante no Rio Grande do Sul era (e ainda é) branca e europeia. Porto Alegre, com sua obsessão pelos casais açorianos, Pelotas e os doces portugueses, o chimarrão com bolo de cuca, a salada de batata alemã. É como se só existisse essa parte da história.
Mas olha só: quibebe, caruru, moqueca, mocotó, feijoada… sempre estiveram na mesa. Só que ninguém dizia a origem. E quando eu descobri? Aquelas receitas de resistência, de quem fazia da sobra um banquete, de quem transformava dor em sabor. É a gente na raiz da culinária brasileira, mas a história invisibilizou isso por séculos. Assim como invisibilizou Zumbi dos Palmares, Dandara, os heróis do Quilombo do Quariterê. A resistência está aí, mas foi empurrada para as margens.
Hoje, a gente tem leis que obrigam o ensino da cultura negra nas escolas. É um começo, mas está longe de ser o ideal. Porque não basta ensinar a história, é preciso vivê-la, reconhecê-la, colocá-la no centro. Temos leis contra o racismo, mas quantas vezes a gente vê essas leis sendo de fato aplicadas? E o 20 de novembro… o que dizer? O Dia da Consciência Negra é criticado, reduzido, atacado como “divisão”. Mas ele é um marco. É lembrar que o Brasil foi o último país da América a abolir a escravidão – e mesmo isso só aconteceu porque a resistência negra forçou a mudança. Só que a abolição não foi um presente. Veio sem reparação, sem inclusão, sem um futuro. E, ainda hoje, os números não mentem: negros ganham menos, morrem mais cedo, ocupam menos espaços de poder.
É por isso que novembro é tão necessário. Mesmo cansativo. Porque o sonho, ah, o sonho… é que a gente não precise mais dessas datas, dessas lutas. É que as diferenças sejam sentidas e respeitadas, e não ignoradas ou usadas para excluir. Não somos iguais, e tá tudo bem. Não é sobre ser igual. É sobre ter as mesmas oportunidades, o mesmo direito de sonhar e realizar.
Equidade. É isso. Só isso. Não é pedir demais, né?
Rejane Martins é mulher negra, empreendedora, criadora do Mesa de Cinema e proprietária da empresa Mesa Produtora, que realiza eventos de cultura e gastronomia como ferramenta de marketing de relacionamento. Integra a diretoria da Odabá – Associação de Afroempreendedorismo.
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