A nova velha moda de quem não aguenta mais, ou de quem ainda nem sabe o que vem pela frente, é o reality shifting, ou apenas shifting. Se você nunca ouviu falar, essa é mais uma doença mental pra nossa coleção, e mostra como algumas pessoas, em especial jovens e jovens adultos, estão vivendo a vida virtual adoidado.
Apelidada de DR, a Desired Reality, que nada tem a ver com discutir qualquer tipo de relação, é a Realidade Desejada, ou seja, você muda a sua realidade para essa que você deseja, através de um conjunto de técnicas misturadas no blender e requentadas na air fryer, para te fazer viver num mundo onde você, querido mochileiro das galáxias, é o dono do seu enredo e destino virtual paralelo.
Nada muito diferente dos momentos de meditação, do êxtase ao fechar os olhos ouvindo uma música que te toca e te leva pra sabe-se lá onde, fazendo sei lá o que, ou lendo um livro que te faz viajar sem nem precisar imaginar sozinho o destino e seus desdobramentos. Um filme, trilogia ou série. Compulsões, álcool e drogas. Games e jogos de azar. Posso dar mil exemplos de como a gente sempre gostou de fugir da realidade, às vezes apenas por nos desagradar momentaneamente, outras por ser pesada, cruel e até insuportável.
O negócio doido dessa DR é que não são raros nem pontuais os momentos de escape. O bagulho é sério, e você se muda de mala e cuia pra Pasárgada, ou pra ser colega de aula do Harry Potter. E, como imaginação e fuga não têm limites, você pode ser o que quiser, onde quiser, sem nenhum apego à realidade, leis da física ou à sua miserável vida real.
Pra chegar lá nesse seu mundo ideal, é só procurar nos inúmeros vídeos instrutivos no YouTube, sites, blogs, comunidades nas redes sociais e até nos arcaicos escritos impressos em papel chamados livros, as dicas, técnicas e relatos pessoais emocionados de como você pode utilizar a hipnose, física quântica, scripts, apps e multiverso pra embarcar nesse rabo de cometa. Sem esquecer dos experts chamados shiftokers, que são os adeptos da modalidade e que compartilham sua vida virtual na plataforma TikTok.
Nada contra a fantasia e válvulas de escape, e reconheço que esse mundo da imaginação de que eu tanto gosto já me salvou, mas também me engoliu algumas vezes. Teve uma época na minha vida em que tudo parecia sem saída. Uma doença grave na família, falta de dinheiro, desânimo, uma depressão total. Me refugiei na música, vivendo com meu headphone sempre que podia, em qualquer momento livre. Eu adormecia com os mesmos CDs tocando as músicas que me levavam pra uma praia linda, limpa e cheia de árvores, onde ninguém estava doente, e a gente comia peixe frito com camarão todos os dias. Minha filha corria pela praia com as amigas e eu não precisava trabalhar em outra cidade, só ficava com ela o dia todo, até o pôr do sol de aquarela, e depois a gente dormia na rede, numa varanda e cabana onde não existia dinheiro, luxo nem mosquitos. Ou baratas.
Mas um novo dia sempre chegava e me dava uma chapuletada. Eu acordava correndo, atrasada, nada pronta pra minha realidade. O tempo passou e o que parecia uma estrada sem saída de tristezas foi mudando depois de piorar, e bem mais calejada pela realidade, voltei a achar o pôr do sol real lindo, fui pra praia com minha filha, e mesmo que não fosse tudo aquela pintura perfeita da minha realidade imaginária, eu tinha voltado a ter uma vida real, onde eu podia dividir, sentir, tocar e viver a imprevisibilidade de um roteiro que não está escrito, mas que vai se formando conforme interagia com outras pessoas.
A novidade dessa DR não está na fuga que todos nós queremos praticar em algum momento, mas sim na falta de retorno ao mundo real. É como se Alice ficasse pra sempre no País das Maravilhas e deixasse que os filmes de apocalipse tomassem conta da realidade real, acabando com o planeta enquanto sonhamos que tudo é lindo, que a paz mundial prevaleceu e o aquecimento global desapareceu.
Como disse o José Ribamar Ferreira, primeiro nome real do depois Ferreira Gullar, “a arte existe porque a realidade não basta”, e fugir da realidade não é o problema. O problema é viver lá, num mundo solitário e egoísta, e não fazer nada na prática pra mudar o que todos vamos sentir na carne e osso.
Foto da Capa: gerada por IA / Freepik
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