Em um mês marcado por denúncias de assédio sexual que dominaram os noticiários e resultaram até mesmo na queda de um ministro, a leitura dos jornais e de outros meios de comunicação revela uma dura realidade: ser mulher no Brasil é um inferno, ainda mais quando ela ocupa um cargo de liderança ou está em evidência.
Na última semana, um jovem empresário que é fundador, mentor e presidente do G4 Educação, startup de educação de negócios, declarou que “Deus me livre de mulher CEO”, mostrando que alguém pode ser inovador na economia e troglodita nos costumes. Prosseguiu afirmando que “essa mulher (CEO) vai passar por um processo de masculinização”. Ainda previu que essa mulher “vai colocar meu lar em quarto plano, eu em terceiro plano e os meus filhos em segundo plano”, decretando que a mulher deve usar “a energia feminina nos lugares certos, lar e família”.
O culpado apontado, como não poderia deixar de ser, é o feminismo, pois “o mundo começou a desabar exatamente quando o movimento feminista começou a obrigar a mulher a fazer papel de homem”. Papel de homem é mandar, dentro e fora de casa. O da mulher é obedecer. Não por acaso, o termo “mulher submissa” está cada vez mais presente nos debates políticos.
A declaração reflete uma plataforma política em que o masculinismo ocupa um papel central. Como explica a antropóloga Rosana Pinheiro Machado, a essência do tribalismo masculino, ou masculinismo, é o ódio às mulheres, reduzindo-as a meros objetos para a reprodução humana. Ou seja, devem usar sua energia nos “lugares certos”: lar e família.
Como em muitos movimentos extremistas de direita, as ideias ultrapassam fronteiras, e Elon Musk já se juntou ao movimento misógino. No início do mês, ele compartilhou uma publicação afirmando que a democracia deveria ser uma “República de machos com alta testosterona”, sugerindo que o voto deveria ser restrito aos “machos alfa”, pois seriam os únicos capazes de tomar boas decisões.
A chamada masculinização da mulher aparece também em outra polêmica das redes sociais. O alvo é a jornalista Mônica Teixeira, presença constante no canal Globo News. Ou melhor, os bíceps torneados da profissional. “Músculos de macho”, “estranha”, “coisa horrível”. Outros dizem que os braços musculosos tiram a atenção das notícias que ela está apresentando. Que inferno! É muita gente que se acha no direito de julgar e condenar a aparência feminina.
Se ser uma mulher em evidência é correr riscos, imagine ser uma humorista de stand-up cega e negra, como a comediante Tatá Mendonça. Eu sou fã dela, costumo dar boas risadas com os vídeos dela. Recomendam que vocês vejam “A cega na comédia”. Ela é talentosa e a todo momento nos provoca, com humor, a repensar seus algozes habituais: o machismo, o racismo e o capacitismo.
Em plena semana do “Dia Nacional da Luta da Pessoa com Deficiência”, ela denunciou ter sido vítima de importunação sexual, momento que está registrado em vídeo e ocorreu em um palco, diante de um teatro lotado. Como contou a comediante: “Estou incrédula que passei por isso, incrédula que a pessoa possa fazer isso.” Durante uma apresentação em São Paulo, ela denunciou uma importunação sexual por parte de um colega de trabalho, que a tocou de forma inadequada enquanto estavam no palco. Tatá, que é cega, relatou que inicialmente pensou que o toque poderia ser de uma amiga brincando.
Ao descrever a situação, disse: “Quando ele desceu a mão, eu já engoli seco.” Tatá expressou sua surpresa ao não ouvir ninguém reagir e pensou que poderia ser uma brincadeira. Porém, ao perceber que era o colega, ela se sentiu “destruída, humilhada, porque é a pior humilhação do mundo.” Situações como essa nos provocam tristeza e revolta, mas, infelizmente, são habituais. Como ele mesma revelou à imprensa, essa não foi a primeira vez que sofreu importunação. Ela contou que, mesmo tentando se proteger ao tirar fotos após os espetáculos, ainda assim é assediada por pessoas que a tocam sem permissão ou de forma invasiva.
O Atlas da Violência 2024, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública – FBSP, nos mostra que o racismo estrutural e institucional, a interseccionalidade entre gênero e raça, e a falta de políticas específicas de proteção são fatores essenciais para entender os altos índices de violência contra as mulheres negras, o que as torna mais expostas a essas condições do que as demais.
O Atlas também aponta que a violência contra pessoas com deficiência é preocupante no Brasil, destacando-se as mulheres como maiores vítimas, especialmente no que se refere à violência sexual e doméstica. Além disso, a combinação de deficiência com outras características sociais, como gênero, raça/etnia, idade e classe social, aumenta a vulnerabilidade de certos indivíduos dentro desse grupo.
Mulheres são as mais impactadas em todos os grupos de deficiência, com as mulheres com deficiência intelectual enfrentando taxas mais de duas vezes superiores às dos homens na mesma situação. É importante registrar que as estatísticas mostram que a violência afeta de forma alarmante as pessoas com deficiência intelectual, com uma taxa de 36,9 casos a cada 10 mil indivíduos. Em comparação, as taxas são de 12,0 para pessoas com deficiência física, 3,8 para pessoas com deficiência auditiva e 1,5 para pessoas com deficiência visuais.
A violência é especialmente alarmante entre pessoas com deficiência intelectual e transtornos mentais, que são mais propensas a abusos. Além disso, jovens entre 10 e 19 anos, especialmente meninas, enfrentam altos índices de violência sexual, enquanto crianças e idosos sofrem mais com negligência e abandono.
Convém lembrar que a violência doméstica ou familiar é aquela praticada por pai, mãe, padrasto, madrasta, cônjuge, ex-cônjuge, namorado, ex-namorado, filho, irmão, cuidador. A violência doméstica também representa 65,2% dos casos de violência contra a mulher e percentual semelhante dos casos de violência contra crianças e adolescentes de até 14 anos são praticados dentro da própria residência das vítimas.
Em relação às mulheres com deficiência, pesquisas mostram que um nível mais alto de escolaridade está ligado a uma maior capacidade de se proteger contra a violência. Além disso, participar de movimentos associativos de pessoas com deficiência e ter um emprego remunerado fora de casa também são medidas preventivas eficazes.
Os fatos, somente deste setembro, mostram que a mulher que sai de casa está sujeita ao implacável julgamento alheio que relaciona o seu sucesso com uma suposta “masculinização” onde ela estaria “roubando” o lugar de um homem “nascido para liderar”.
Se a saída de casa pode ser traumática, ficar no lar a torna ainda mais sujeita à violência, especialmente aquelas mulheres com maior vulnerabilidade, seja por deficiência ou pela dependência econômica, assim como por questões culturais, raça, gênero ou por ser LGBTQIA+.
Os dados mostram que a utopia reacionária de uma mulher restrita ao lar pode ser tentadora para alguns, especialmente homens. Mas, para quem a vive, em regra, é um inferno.
Foto da Capa: Tata Mendonça / Reprodução de Redes Sociais
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