Certo dia, há mais de dez anos, voltando do almoço quando trabalhava na Ilha do Fundão, no Rio de Janeiro, senti nas costas a intensa radiação solar. Tão forte que parecia queimar. Ao mesmo tempo, um vento cálido e constante soprava do fundo da Baía da Guanabara. Um pouco à frente, dava para ver a corrente da maré vazante no canal que separa a Ilha do Fundão do continente. Mais tarde, ao subir para Petrópolis, onde moro, veria os riachos e rios da Serra Fluminense descendo caudalosos pelos vales entre as montanhas.
Me lembrei então de uma frase do personagem menino1, do filme August Rusch, em que ele diz: music is everywhere (“a música está em toda parte”). E me dei conta de algo óbvio, mas que costumamos ignorar: “A energia está em todo lugar”. Luz solar, vento, energia hidráulica estão à nossa volta. O tempo todo. E, ao contrário dos combustíveis fósseis, não custam nada.
Por que, então, não fazemos mais uso desses recursos e continuamos extraindo carvão e petróleo, a custos cada vez mais altos para a sociedade e o meio-ambiente? Somente para queimá-los e produzir uma energia que poderíamos obter com custo marginal2 quase zero?
Há várias razões para isso. A principal delas é que, por muito tempo, carecíamos de tecnologias capazes de capturar de forma eficiente a energia solar e a eólica. No entanto, como veremos a seguir, a maioria dos obstáculos que impediam a adoção ampla das energias renováveis não existe mais. A transição para uma matriz energética completamente limpa está cada vez mais viável. Tanto técnica como economicamente.
De todas as opções que temos – embora no momento a energia hidráulica seja a energia renovável mais utilizada no Brasil e no mundo – as energias solar e eólica são as que apresentam maior potencial para atender à demanda atual e futura.
Energia Solar
Quando o uso de painéis fotovoltaicos para capturar energia solar começou a se expandir, na década de 1990, o principal fator que inibia sua disseminação mais ampla era o custo dos equipamentos. Mas isso mudou muito. As células solares ficaram dez vezes mais baratas entre 2010 e 2020, e seu custo continua caindo rapidamente. Esse fato, junto com a maior eficiência dos processos de instalação e distribuição, transformou a energia solar em uma realidade.
Recentemente, a energia solar ultrapassou a energia eólica, tornando-se a segunda maior fonte de energia elétrica do Brasil, tendo alcançado 23,9 GW de potência instalada, enquanto a geração hídrica possui hoje 109,7 GW (a potência instalada de toda a matriz elétrica brasileira é de 205 GW – veja nas notas3 mais detalhes sobre estes valores). A geração solar registrou um aumento de cerca de 20 vezes em cinco anos! Se essa tendência continuar, daqui a mais cinco anos sua potência instalada poderá chegar a pelo menos 200 GW, equivalente ao total da matriz elétrica brasileira, que é hoje, como vimos, de 205 GW.
Energia Eólica
Ainda que tenha sido ultrapassada pela energia solar, a energia eólica não é menos importante. Atualmente, representa 11,1% da geração de eletricidade do país (23,75 GW) e apresenta um grande potencial. A capacidade instalada era de 10 GW em 2010 e dobrou para 20 GW em 2020. Em 2023, o Brasil registrou o segundo maior aumento da produção de energia solar e eólica no mundo, atrás apenas da China.
E há perspectivas muito interessantes para aumentar a geração. A produção de energia eólica em offshore (alto-mar), por exemplo, é ainda muito pouco explorada no mundo (7% do total) e menos ainda no Brasil. Os ventos de alto mar são muito mais estáveis e fortes, e poderiam acrescentar mais confiabilidade à matriz energética.
O rápido avanço nas gerações eólicas e fotovoltaica, assim como o custo cada vez menor, a ponto de estar se tornando mais baixo do que as demais fontes (se desconsiderarmos os subsídios), demonstra que são alternativas viáveis e econômicas para adotarmos uma matriz energética completamente limpa.
Intermitência
Mas há alguns problemas. O primeiro deles é a intermitência. O sol brilha de dia, mas não à noite. E há menos radiação solar em dias nublados ou chuvosos. Além de variar de intensidade de acordo com a época do ano, principalmente no Sul do Brasil. O vento sopra à noite também, mas varia muito de intensidade ao longo dos dias e dos meses do ano (daí a vantagem dos ventos de offshore, que são bem mais regulares). A energia hidráulica é mais estável, mas também varia em diferentes épocas do ano e está sendo cada vez mais afetada por secas prolongadas.
Como fazer para garantir um suprimento contínuo de eletricidade se estas fontes são por natureza intermitentes? Inicialmente, nota-se que as causas da intermitência não são as mesmas para as diferentes fontes, de modo que muitas vezes a redução de uma é compensada pelo aumento na outra. Num país com a rede elétrica integrada nacionalmente como o Brasil, muitas variações diárias ou sazonais podem ser compensadas enviando-se energia de uma região para outra.
Mas isso não é o bastante para tornar o sistema confiável. É preciso encontrar formas de estocar energia para garantir que nunca haverá desabastecimento. No Brasil, temos utilizado usinas térmicas movidas principalmente a gás natural para suprir a energia faltante nas épocas de baixa geração de energia hidráulica. É uma alternativa para a transição. Talvez com a utilização de usinas de menor porte, mais disseminadas pelo país ou até mesmo de mega geradores que atendam bairros, indústrias e outras instalações. O uso de biomassa é outra opção que garante, pelo menos em tese, a menor emissão de carbono.
Mas há alternativas mais interessantes. Começando com as baterias eletroquímicas (pilhas, baterias de carros e outros equipamentos). Elas servem principalmente para intermitências de pequena duração, ou seja, períodos de, no máximo, algumas horas. Todos estamos acostumados com o uso de baterias, uso esse que agora está sendo ampliado por sua utilização para mover veículos elétricos. Mas sua escalabilidade termina por aí.
No momento, seria impossível conceber um sistema de baterias eletroquímicas que suprisse a eletricidade de uma cidade, por exemplo. Além disso, a energia elétrica gerada a partir de baterias é cara se comparada com as fontes renováveis, o que acarretaria um custo maior para todo o sistema. Por outro lado, muitos pesquisadores acreditam que será possível em breve fabricar baterias cinco vezes mais potentes, o que pode resolver grande parte do problema de intermitência de curto prazo e reduzir seu custo.
Baterias de Água
Essa alternativa, também chamada de hidrelétrica reversível, é uma real opção para se substituir as usinas térmicas. A ideia é simples. A concepção mais usada é se dispor de dois reservatórios de água, situados em diferentes altitudes. Quando houver excedente de energia, esta é usada para bombear água do reservatório mais baixo para o mais alto. Quando houver falta, a água armazenada no reservatório superior é usada para gerar energia hidrelétrica.
As baterias de água já são uma realidade. Na Suíça, um projeto denominado Nant de Drance pode fornecer 900 MW por até 22 horas. Na China, o projeto de Fegning, situado perto de Beijing, é o maior do mundo, com 12 turbinas que podem gerar 3.600 MW. Estados Unidos, Áustria e Austrália também têm planos ambiciosos para o uso dessa tecnologia.
Note que as baterias de água são escaláveis. Tanto podem ser megaprojetos, como esses da Suíça e da China, como podem ser instalações que atendam cidades, bairros e até mesmo condomínios. O conceito é tão bom que eu não entendo por que não está sendo mais amplamente utilizado.
Energia Nuclear
Ainda que provoque um certo temor, o fato é que a energia nuclear constitui uma fonte confiável e estável. “Mas é algo muito perigoso”, diriam alguns, lembrando de acidentes como Chernobyl ou Three Mile Island. No entanto, a energia nuclear é utilizada há dezenas de anos por muitos países sem que acidentes tenham sido reportados. Na França, por exemplo, 70% da energia elétrica é gerada por usinas nucleares.
Temos dados para afirmar que a energia nuclear é segura. Segundo o site Our World in Data, o número de mortes por TWh causado pelas diferentes fontes de energia é de 24,6 para o carvão, 18,4 para o petróleo, 4,6 para a biomassa, 2,8 para o gás natural e apenas 0,07 para a energia nuclear. Números, como você sabe, não mentem. Temos que deixar de lado receios infundados e considerar a energia nuclear como uma das opções para obtermos uma matriz energética de baixo carbono segura e confiável.
Por outro lado, a energia nuclear é cara. E construir grandes usinas leva tempo. A melhor forma de utilizá-la é apenas como um complemento para garantir a estabilidade do sistema elétrico. Priorizando usinas menores. Muitos pequenos reatores espalhados pelas diferentes regiões, que possam atuar nos casos de intermitência (que tendem a ser locais), são a melhor maneira de se utilizar a energia nuclear na nova matriz energética.
Hidrogênio
O hidrogênio é utilizado nas chamadas células de combustível, que obtém energia de uma reação química entre hidrogênio e oxigênio – e seu único subproduto é a água. A vantagem do hidrogênio é que ele pode ser armazenado, abastecendo as redes em caso de falta de outras fontes. E pode também ser utilizado para mover veículos, principalmente os mais pesados, como grandes caminhões, navios e aviões, nos quais o uso de baterias é inviável.
O que ocorre é que a maior parte do hidrogênio produzido atualmente no mundo é fabricada a partir do gás natural, pela reação do vapor d’água com hidrocarbonetos. Esse processo produz gases de efeito estufa. Por isso, esse tipo de produto é chamado de “hidrogênio cinza”.
A outra maneira de produzi-lo é a partir da eletrólise. Neste caso, dois eletrodos (um tipo de barra de metal) ligados a uma fonte de energia são inseridos em um recipiente com água. As barras têm polaridades diferentes e a energia que passa por elas quebra as moléculas de água, separando o hidrogênio. Se a fonte de energia for renovável, esse processo não emite gases de efeito estufa, e o produto é denominado “hidrogênio verde”.
A eletrólise requer muita energia, de modo que não se trata de um sistema eficiente para o fornecimento primário de energia. Mas, se o objetivo for o armazenamento ou o uso de hidrogênio em situações (como em veículos pesados) em que o uso direto de energia elétrica não for viável, seu uso é justificado.
Uma das alternativas mais interessantes para se obter energia para a eletrólise são as fontes eólicas, ainda que a energia solar também possa ser utilizada. No momento, há no Brasil, especialmente no Nordeste, planos de se investir mais de 500 bilhões de reais em plantas de produção de hidrogênio verde.
É um número assombroso, que pode tornar o Brasil um dos maiores produtores de hidrogênio verde do mundo.
Não há tempo a perder
O que vimos até aqui demonstra de forma inequívoca que já temos alternativas para a produção e armazenagem de energia elétrica através de fontes limpas. Não precisamos mais de combustíveis fósseis, nem mesmo se considerarmos um grande aumento na demanda. Essa constatação é revolucionária. Vou, portanto, frisar isso mais uma vez: podemos obter toda a eletricidade do mundo a partir de energias renováveis, com zero uso de combustíveis fósseis!
A matriz elétrica brasileira, constituída em mais de 70% de fontes renováveis, é um exemplo para o mundo. E podemos chegar facilmente aos 100%, destacando ainda mais o país como um líder da transição energética. Mas isso tem que ser um compromisso de todos, governo e sociedade. Ainda há muita gente no Brasil defendendo o aumento da produção de petróleo, o que vai na contramão dessa visão de um país que lidere a transição energética.
O mundo, por outro lado, está muito longe da nossa situação. Ao contrário do Brasil, mais de 70% da energia elétrica do mundo ainda é gerada pela queima de combustíveis fósseis, sendo que nada menos do que 36% ainda o são a partir do carvão, seguido por petróleo e derivados (29%) e pelo gás natural (27%)5.
Há movimentos para substituir o carvão pelo gás natural (um processo menos poluidor, mas ainda assim emissor de CO2) e ambos por energias renováveis. Mas, se isso está ocorrendo em alguns países, do ponto de vista global, não está dando certo. Na verdade, o uso de combustíveis fósseis na produção de energia elétrica tem crescido nos últimos anos. Sem perspectivas de redução significativa. Até agora, tudo que temos são promessas, planos ambiciosos, que não estão se transformando em realidade.
Vivemos tempos sombrios, com as COP das mudanças climáticas sequestradas pelos países produtores de petróleo e Donald Trump com seu “drill, baby, drill” (se referindo à perfuração de poços de petróleo). No entanto, a meu ver, a crise ambiental global vai se impor até mesmo aos maiores negacionistas. A dura realidade de um planeta em rápida deterioração vai obrigar até os mais céticos a reverem suas posições. A questão é quanto sofrimento, desespero e mesmo perdas de vidas teremos que suportar até a humanidade de fato agir para mudar a situação. Só não poderemos dizer que não havia alternativas.
1O ator menino do filme “August Rusch” é Freddie Highmore, agora mais conhecido por ser o protagonista da série “The Good Doctor”.
2Custo marginal é o custo a mais que uma empresa vai ter para aumentar a produção de um determinado bem ou produto. No caso das energias renováveis se considera o custo marginal muito baixo porque os insumos para produzir energia (água, luz solar, vento), não custam nada, diferentemente dos combustíveis fósseis (petróleo, carvão – cuja produção envolve uma parcela significativa do custo final).
4O Watt é a unidade equivalente a um joule (J) por segundo (energia por segundo). Potência elétrica instalada é a capacidade máxima de energia que um sistema pode fornecer a cada segundo. Geração elétrica é capacidade de se transformar outros tipos de energia (hidráulica, solar, eólica) em energia elétrica. MWh (ou KWh como vem na sua conta de luz) é uma medida de consumo. Significa o total de energia que foi utilizado num determinado período.
5Meu livro “Planeta Hostil”, que descreve de forma abrangente os processos de degradação ambiental do planeta, também apresenta discussões sobre as atuais matrizes energéticas e as perspectivas (nem sempre boas) para sua evolução. O livro, tanto a versão física como o e-book, pode ser adquirido em livrarias físicas e online de todo o Brasil.
Observação final: para vídeos e textos adicionais confira também meu Instagram @marcomoraesciencia.
Marco Moraes é geólogo formado pela Universidade Federal da Bahia (UFBA/UFRGS) e Ph.D. pela Universidade de Wyoming (EUA). Construiu a maior parte de sua carreira profissional, de mais de 37 anos, como pesquisador do Centro de Pesquisa da Petrobras (CENPES). Desde 2017, quando deixou a vida corporativa, se dedica a estudar os problemas do planeta. É autor do livro "Planeta Hostil", lançado em 2024, pela editora Matrix.
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