Tem sido muito debatido o que fez as distopias ganharem tanto espaço nestas últimas décadas. Tenho eu mesmo lá minhas hipóteses, e a principal delas diz respeito ao fato de que as distopias são populares hoje porque casam com uma ideia algo desesperançada (e com laivos reacionários) em ampla circulação: a de que o progresso não é inevitável como querem os otimistas, e mesmo quando ele assim se apresenta, talvez seus desdobramentos não sejam os melhores possíveis.
Pode ser que haja em algum lugar uma pesquisa abrangente que nos forneça dados concretos, mas se tem, eu não conheço. Assim, vou partir de uma impressão compartilhada com muitos interlocutores e, com certeza, com vocês aí, meus sete ou oito leitores: a ficção contemporânea, principalmente aquela voltada para o consumo popular, se direcionou com muito mais força nas últimas duas décadas a retratar sociedades distópicas do que utópicas. Em outras palavras, a distopia parece ter sido uma das alegorias mais frequentes nas últimas décadas para traduzir questões prementes do presente, o que até não é de admirar se lembrarmos de todo o tipo de coisa que andou acontecendo nessas últimas duas décadas: crise financeira global, estabelecimento da ditadura invisível e virtual dos algoritmos das big techs, reemergência de conflitos com o potencial de se degradarem em conflitos internacionais em larga escala, ascensão de um discurso político populista de extrema-direita que basicamente tenta dar roupagem moderna aos extremismos nacionalistas da primeira metade do século XX etc.
Avesso
É impossível definir distopia sem falar de seu avesso, a utopia, gênero no qual uma narrativa cria uma espécie de futuro bem-aventurado em que, seja lá por qual motivo ou ideologia imaginado ou professada pelo autor, o mundo chegou a um ponto em que não ocorrerão mais rupturas violentas de ordem social e muitas das mazelas do presente foram de algum modo sanadas. O nome, claro, foi tomado do livro de Thomas More (1478 – 1535), sobre um viajante que narra sua jornada à terra perfeita chamada criticamente de “Lugar Nenhum” (daí o U-Topos, vindo do grego). Em termos imaginativos, fica claro que More estava criando uma terra na qual os problemas de seu tempo na Inglaterra do século XVI estariam solucionados, principalmente as desigualdades econômicas e de classe. Mas More não foi o primeiro a escrever o que se poderia classificar como “utopia” se, por esse termo, pensarmos não em sua obra, mas no conceito de um livro sobre um futuro luminoso de uma humanidade vivendo em uma terra sem males. Nesse sentido, há quem aponte A República, de Platão, como uma proto utopia, já que no diálogo o filósofo narra os preceitos de uma sociedade ideal, um reino governado por uma aristocracia algo improvável produzida pela própria República, com seus “melhores” selecionados e especialmente treinados desde a infância. Platão é claro em afirmar que sua sociedade “ideal” é criada em oposição à democracia ateniense na qual ele vivia – em uma simples contagem de maioria de votos decidia os rumos da sociedade. Não era, para o filósofo, o melhor modo de governo – e isso que o termo “democracia” aplicado às sociedades gregas tem, forçosamente, sentido bem diverso do contemporâneo, dadas as restrições a quem poderia se manifestar nesse sistema, sustentado economicamente, aliás, por servidão e mão de obra escrava.
Projeções
Assim, utopias, na literatura, costumam ser instrumentos para que um autor projete no futuro ou em um momento posterior a uma mudança definidora as questões que considera as mais problemáticas do momento em que vive e escreve. Por isso Santo Agostinho faz de seu A Cidade de Deus uma utopia cristã no pós-vida para os afortunados que fossem acolhidos por Deus após uma vida que a doutrina da Igreja, e portanto do próprio Agostinho, considerasse boa e digna. Já H.G. Wells, um intelectual de visão socialista, vai adaptar a ideia de Platão de uma aristocracia no comando de uma cidade ideal e ampliá-la para todo o mundo em Uma Utopia Moderna, romance no qual a sociedade descrita é administrada por uma casta governamental inspirada nos princípios teóricos da “servidão” dos samurais, com os quais Wells teve contato alguns anos antes em obras do intelectual japonês Nitobe Izano. Sendo que o Bushido idealizado e codificado por Izano servia, principalmente, a uma certa propaganda nacionalista do Japão do período, o que não deixa de conflitar com a descrição do “mundo perfeito”, de Wells, no demais muito semelhante aos princípios do socialismo.
A utopia, portanto, precede a distopia. Tanto que o primeiro uso da palavra “distopia” de que se tem notícia é em um discurso de 1870 assinado por John Stuart Mill (1806 – 1873), no qual ele cunha o termo para definir uma espécie de “avesso da utopia”, numa referência à obra otimista de More. Mas o termo vai mesmo se popularizar a partir de meados do século XX, com o surgimento de grandes clássicos da ficção científica que ainda são considerados referências do gênero, como Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley; Fahrenheit 451, de Ray Bradbury ou 1984 de George Orwell.
Curiosamente, com o tanto que se fala hoje em distopias, são poucos os que admitem uma hipótese para mim óbvia: a distopia surge muito da contaminação do otimismo utópico pelo conformismo do pensamento conservador. Não é à toa que um dos grandes livros a examinar o fenômeno das distopias no calor da hora é de um intelectual conservador americano, From Utopia to Nightmare (sem edição no Brasil, “Da Utopia ao Pesadelo”, em tradução livre), publicado em 1962 pelo poeta e professor Chad Walsh. De visão política “liberal-humanista”, digamos, Walsh defende que o século XX foi o do desencanto das expectativas utópicas formadas pela sociedade confiante no progresso social e tecnológico do século XIX, e que, assim, as utopias, peças que refletiam o entusiasmo com o futuro, passam a representar o desencanto do Zeitgeist no momento em que esse futuro se afigura uma marcha sombria em direção ao inescapável desastre. “Quando digo que a utopia falhou, quero dizer simplesmente que o século XX decepcionou de modo cruel as expectativas do século XIX.“, escreve ele (tradução minha)
Sendo um homem de formação religiosa e ministro episcopal, Walsh leva a discussão para um território metafísico, pensando na ascensão da literatura distópica como uma espécie de alerta profético das grandes consciências artísticas de seu tempo, uma advertência sobre o quanto, apesar do otimismo progressista do século anterior, o ser humano não se alçou muito além de sua condição animal e as mudanças em sua sociedade só tornaram ainda mais difícil reconhecer o bem e o mal. “Além disso, afirmo que muitos dos escritores distópicos são os profetas dos nossos tempos”, afirma. “Eu uso a palavra profeta em algo do seu sentido bíblico, para significar alguém que observa a sociedade, avalia-a de acordo com princípios que considera eternos e oferece mensagens de advertência onde vê que está se extraviando.”
Qualquer semelhança com o presente e com um discurso recorrente em muitos comentadores e personagens sociais e políticos, como vemos, é mera coincidência.
Desencanto
A evolução das distopias se dá em ondas de ruptura e renovação que são, em sua maior parte, desconhecidas do grande público, então vou aproveitar esse fato para dar aqui um pulo de uns 60 anos, porque nem eu nem vocês temos tempo para um mergulho dessa profundidade, e voltarmos ao mundo contemporâneo, em que a distopia parece ser não apenas um tema recorrente como um filão lucrativo. Ao ponto de o termo “distopia” estar tão disseminado que já vi ser levantada aqui e ali uma discussão importante de conceito: estaria ele sendo malbaratado pelo uso equivocado e insistente, quando não insistentemente equivocado para falar de filmes, livros, quadrinhos, ou mesmo para comparar essas coisas com a nossa realidade? Não é porque uma situação política descrita numa narrativa é ruim ou francamente autoritária que isso automaticamente classificaria uma narrativa como distópica.
Até concordo com essa abordagem, mas não vou me aprofundar nessa discussão também porque para mim ela, em vez de lidar com o fenômeno, prefere contorná-lo. Sendo ou não apropriado, o uso do adjetivo “distopia” é disseminado para nomear um número cada vez maior de obras dedicadas a pensar o futuro em tons cada vez menos otimistas. Nem todas serão distopias, mas a ampla percepção pública de que são também é parte do fenômeno, e é nela que eu quero me concentrar.
As distopias parecem se tornar presentes (e às vezes onipresentes) para refletir um certo desencanto com a ideia de que o progresso científico vai significar também progresso social ou uma sociedade melhor e mais justa (embora cada um que levante esse argumento tenha suas noções diferentes sobre o constitui essa sociedade melhor). Coincidentemente, é claro ver que estamos neste mesmo momento expostos a o mesmo discurso pervasivo com relação às tecnologias que fizeram a revolução digital. Diferentemente do que defendiam alguns colegas deslumbrados quando eu estava na faculdade, o que vimos com a feição que a internet assumiu hoje não é a democratização da informação, mas a disseminação de teorias conspiratórias fantasiosas e mentirosas e o roubo contínuo de dados por grandes corporações de tecnologia e a armadilha do algoritmo etc. Logo, faz sentido estarmos de novo num cenário de muitas distopias, o que se explica também pela flagrante degradação do diálogo democrático com a ascensão recente de uma turma que faz da truculência método político.
Tudo isso é verdade, mas é bom sempre olhar para esse cenário e pensar em outra coisa. O próprio Walsh que eu citei aqui era um humanista conservador desencantado com “os rumos” do século XX e achando que alguns progressos tiveram desdobramentos desastrosos, como uma sociedade com índices notáveis de leitores alfabetizados, como a alemã, terminarem formando um imenso público leitor para o Mein Kampf, por exemplo. Ou como se comenta hoje: com o Brasil sendo um dos países de maior uso de internet no planeta, aumentamos o número de produtos no mercado da atenção. Logo, sim, um certo pessimismo generalizado talvez explique a popularização recente das distopias, mas é bom lembrar que muitos dos valores estéticos das distopias são os de um reacionarismo paralisado e cínico: o presente é a degradação do passado; o ser humano é um animal e não escapará de sua natureza sem coerção firme; o poder do status quo é demasiado; a não ser para um punhado de escolhidos etc.
Distopias são um deleite literário, algumas são divertidas e impactantes, mas com o pessimismo como base, não se tem ação política. E no cipoal gotejante da cultura, é fácil se deixar levar pelo apelo da comoção rumo a um tipo de mentalidade com a qual você talvez nunca desejasse concordar. Eu gosto de ler sobre um mundo caindo aos pedaços tanto quanto qualquer um. O que não significa que eu vá me conformar a ficar lendo distopias no cantinho enquanto os ricos babacas (ver aqui) leiloam o mundo do lado de fora e o meu pensamento do lado de dentro.
Foto da Capa: Ilustração gerada por AI/Canva
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