Estou devorando um dos livros mais recentes da premiada autora vencedora do prêmio Nobel de literatura Annie Ernaux. O livro, chamado “a escrita como faca e outros textos”, traz uma extensa entrevista com a autora sobre seus diversos títulos publicados e seu processo criativo, visceral e político frente à escrita. Uma das marcas dessa autora é a narrativa autobiográfica. Porém, em suas próprias palavras, como uma forma de coletivização – mas não homogeneização – da experiência humana e dos eventos marcantes de sua vida. Mesmo falando sobre sua historia, ela jamais deixa de aplicar uma perspectiva social, política e coletiva, atribuindo um sentido maior aos acontecimentos aparentemente banais de uma biografia que poderia ser a minha ou a sua. E talvez seja isso a origem do meu encantamento com Annie. Poder pensar que tudo que nos acontece, se bem contado, pode servir como reflexão e transformação para mais pessoas e para compreender mais o humano, demasiado humano.
Esse sentimento coletivo (gostaria eu, universal, mas sei que não o é) de busca por aprofundamento, complexidade e sentido maior para a existência não é regra. Aliás, às vezes sinto como se fosse cada vez menos a regra. O que mais vemos hoje são experiências modelo, padrões, referências inatingíveis, ideais inalcançáveis e produção de um sentimento de insuficiência crônica. Chego a ter momentos de desânimo e descrédito na humanidade e me sinto na contramão de um fenômeno neoliberal de produção e conquista individual.
Porém, por sorte, ou consequência disso, quanto mais vejo postagens pasteurizados de sensos estéticos que propagam vidas bem decoradas, descoladas, suaves, divertidas e até pretensa e artificialmente poéticas (carrosséis de Instagram com fotos bonitas de páginas de poesia, falsamente despojadas em meio a selfies sensuais cheias de filtros mais do que verdadeiramente poesia) na contramão e com alívio percebo que a literatura atual vem sendo tomada por escritas como de Annie, que desnudam o desconforto, a inadequação, o trauma. Se estão sendo lidas e recebendo prêmios é porque estão sendo consumidas, alcançando um público quem sabe ávido, como eu, por encontrar as próprias entranhas expostas de forma bela e real. Ler-se traz conforto e sentido. Escrever-se e ver-se refletida em que lê, também.
E escrevo essas linhas lembrando que hoje é dia mundial do livro, esse objeto inanimado mas muito mais vivo que muitos acontecimentos externos. Esse objeto que tem o poder de levar quem nele mergulha a viagens inimagináveis e a desvendar aspectos de si que dificilmente outra fonte de entretenimento conseguiria (talvez só música). Eu compro muito mais do que consumo os livros que tenho. Não sou uma leitora obsessiva, metódica. Não divulgo tudo que leio porque leio aos pedaços. Abandono leituras e depois as retomo. Leio mais de um livro ao mesmo tempo. Gosto de espalhar livros que amo e achar pontos de convergência entre eles.
Annie tem sido minha Clarice nos últimos tempos – guardadas as devidas proporções. Ela escreve como quem se entrega, como quem não se teme. Como quem entende que os acontecimentos de uma vida devem ser memoráveis, mesmo (ou talvez especialmente) os mais traumáticos. Assim deveria ser escrever. Assim deveria ser viver.
Foto da Capa: Divulgação
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