Natal de 2017. O editorial do conceituado British Medical Journal, edição de 13 de dezembro, propõe: “A esperança é uma ferramenta terapêutica. Não tenha medo de usá-la’’.
Parece ser senso comum que a esperança, atribuível mais à experiência e ao instinto pessoal, é fundamental para a superação de qualquer doença. Bressan, R. e colaboradores, autores do artigo, sugerem que possa ser otimizada como qualquer outra abordagem na construção de uma boa relação médico-paciente.
Com muita propriedade, são consideradas como necessidades do paciente o conhecimento de que não está bem, de ser entendido e de receber, por parte de seu médico, uma palavra de esperança.
O tema não é novo. Pioneiros da Medicina Persa, Rhazes, Avicena e Jorjani, já preconizavam, nos Séculos IX a XII, a essencialidade de fatores psicológicos na manutenção da saúde e sua eficácia para o tratamento. Documentos históricos demonstram que eles podem ser considerados precursores da psicoterapia. Relacionavam efeitos de estados de espírito e sentimentos em outras condições, incluindo nutrição, sono e atividade física.
Preconiza-se que a relação médico-paciente receba uma atenção especial na formação acadêmica, mas a esperança ainda parece negligenciada. Poderia se aventar que não dominamos a sua prescrição. Dose, forma de administração e até medo do exagero.
Alguém poderia ser vítima de intoxicação de esperança? É possível.
Evita-se dizer ao paciente que ele irá “melhorar’’ quando a realidade dos fatos não nos dá garantias, isso é um passo para a perda da imprescindível confiança. Nesse caso, poderia ser definida com a ironia de Mario Quintana: “A esperança é um urubu pintado de verde’’. Uma falsa esperança. Aquela que, segundo a cantora Charlie Rae: “…é uma coisa terrível, se é a única coisa que te mantém vivo, você estará morto até o amanhecer’’.
Dos anos iniciais de minha formação, trago à memória um artigo que alertava sobre uma espécie de “conspiração do silêncio”. Jovens aprendizes, ao iniciarem contato com doentes, muitas vezes se deparam com similaridades que vão da coincidência de males, semelhanças físicas ou até uma prosaica armação de óculos parecida à usada por um tio querido. Projeções e transferências de temores próprios e de afetos próximos que, mal compreendidos, constituem-se num prato cheio para o sofrimento e, muitas vezes, motivo suficiente de desistência de uma carreira promissora.
Deve ser algo parecido o que bloqueia o estímulo ao uso da esperança. Um embate improcedente entre o racional e o razoável e a insegurança e o temor de estarmos agindo de forma desonesta.
Da crônica familiar pesam-me as lembranças da visita de uma integrante da equipe de oncologia que intempestivamente entrou no quarto de minha mãe para questioná-la se sabia da gravidade e inexorabilidade da leucemia recém-diagnosticada. Sem convite, sem noção, instada talvez a parecer douta e segura e, quem sabe, perturbada intimamente com a tranquila aceitação que a paciente buscava aparentar. E, dias depois, já na véspera de a perdermos para a doença, da ansiedade de meu pai, bruscamente travestida de euforia, ao correr para o mercado público a fim de comprar um chá que alguém assegurou que a curaria.
As não distantes polêmicas em torno da apregoada ação de uma substância milagrosa, a fosfoetanolamina, na “cura” do câncer, demonstram o quanto se mantém a insensibilidade, a ignorância, a ganância e a má fé em momentos de fragilidade humana, envenenando a quem tem fome e sede de esperança.
Especialistas ensinam que há diferenças entre esperança e otimismo. Otimismo é a confiança de um indivíduo em um bom resultado, enquanto a esperança é uma forma de pensar orientada para objetivos que faz com que se invista tempo e energia no planejamento de como atingi-los. Consiste em dois componentes interativos: em primeiro lugar, caminhos ou rotas para alcançá-los e, em segundo lugar, intenção e perseverança.
O otimista talvez nada faça baseado na sua certeza de melhora, o esperançoso agirá, tomará suas medicações, modificará o que for necessário.
Como pregava Santo Agostinho: ‘’A esperança tem duas filhas lindas, a indignação e a coragem; a indignação nos ensina a não aceitar as coisas como estão; a coragem, a mudá-las’’.
Com sua peculiar genialidade, Ariano Suassuna arrematou: “O otimista é um tolo. O pessimista, um chato. Bom mesmo é um realista esperançoso’’.
Aceita a premissa da esperança como um dos mais poderosos aspectos terapêuticos da relação médico-paciente, é importante entender que o conceito de “arte da medicina” não deve mantê-la como algo etéreo, ao mesmo tempo sublime e intangível, inalcançável.
Há evidências que os benefícios terapêuticos são biologicamente plausíveis se a esperança é vista como um tipo de efeito placebo.
Estudos de manejo de dor e também da doença de Parkinson, por exemplo, com utilização de tomografia por emissão de pósitrons e ressonância magnética funcional, sugerem que os placebos estão associados a uma mudança nos níveis dos neurotransmissores e à ativação de regiões cerebrais envolvidas em recompensa e atenção. Uma base neurobiológica está em pleno desenvolvimento. E outras frentes se abrem.
Deve-se sempre priorizar a busca de habilidades necessárias para utilizá-la com todo seu potencial na prática assistencial diária e facilitar a formação em excelência das novas gerações de terapeutas. Esse esforço é um avanço a ser comemorado. Restará sempre, no entanto, o fascínio e o mistério nos meandros da relação entre alguém que sofre e aquele que o ampara, no ato de cuidar.
“Eu disse à minha alma, fique quieta e espere sem esperança / Pois a esperança seria a esperança para a coisa errada; / espere sem amor / Porque o amor seria o amor da coisa errada, ainda existe fé / Mas a fé, o amor e a esperança estão todos esperando’’, escreveu T. S. Eliot.
Mais do que certezas, ação. Talvez pouco signifiquem as plenas convicções.
Entendo melhor meu pai quando se dizia incomodado com a atitude de muitos médicos: não davam chance de acreditar na melhora, faltava-lhes algo. Partilhava, sem o saber, da mesma convicção de Samuel Taylor Coleridge, para quem “o melhor médico é aquele que mais esperança inspira”.
A verdade, afinal, pode estar em Paulo de Tarso: “Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três; porém o maior destes é o amor”.
Prescrever esperança, com honestidade, é mais do que ser cordial, é ato consequente e faz imensa e apaziguadora diferença.
Foto da Capa: Freepik / Gerada por IA
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