O resultado do primeiro turno das eleições 2022 teve um consenso: as pesquisas eleitorais de intenção de votos perderam de lavada. Foi uma derrota histórica. A crítica aos institutos de pesquisa ecoou dos partidos da esquerda e da direita, ainda que as manifestações mais fervorosas contra as pesquisas tenham sido do presidente-candidato Jair Bolsonaro. Mais de uma vez, Bolsonaro insinuou que as pesquisas foram manipuladas para prejudicá-lo, já que ele aparecia atrás do candidato Lula. Uma fala típica da teoria da conspiração egocêntrica. Minha intenção, neste texto, é refletir sobre onde e por que as pesquisas destoaram dos resultados da urna. É importante pontuar, nas urnas, Lula teve 48% dos votos válidos e Bolsonaro 43%, portanto, as pesquisas para presidência erraram a porcentagem, neste caso, indicando até dez pontos percentuais de diferença, mas não erraram quem seria o mais votado. A distância entre as pesquisas e as urnas pode ter vários fatores, um deles é a espiral do silêncio, outro é a abstenção e há ainda o medo e a metodologia.
O presidente Bolsonaro é conhecido por ideias homofóbicas – “prefiro que um filho meu morra do que apareça com um bigodudo por aí (2011)” –, preconceituosas e desrespeitosas contra as mulheres – “jamais iria estuprar você, você não merece (2003)” –, e de apologia à violência – “vamos fuzilar a petralhada do Acre (2018)” –, proferidas ao longo da carreira política e levadas ao Palácio do Planalto com ele em 2019. Como este comportamento é notório e público, mulheres, homossexuais, simpatizantes e pessoas que convivem com eles tendem a concordar com as críticas feitas a Bolsonaro e ao seu governo. Neste caso, há uma tendência de mulheres ficarem constrangidas em defender Bolsonaro ou mesmo declarar voto nele e nos seus apoiadores, como em Mourão, seu vice-presidente. Vergonha de defender publicamente não impede o voto, esta lógica é explicada pela espiral do silêncio.
Apesar da memória curta do brasileiro, na pandemia de Covid-19 as posições do presidente Bolsonaro e seus ministros eleitos senadores Damares Alves e Marcos Pontes, para citar só dois, foram anticientíficas e desrespeitosas em relação a milhares de famílias que perderam os seus familiares. Foram mais de 650 mil mortes de Covid-19 e o presidente do país desdenhou da doença ao se referir a ela como “gripezinha” com a qual não era preciso se preocupar. Ao ser questionado sobre o recorde de mortes disse “E daí, sou Messias, mas não faço milagres”. Houve ainda atraso na compra de vacinas e o estímulo ao tratamento precoce não indicado pela comunidade médico-científica. Diante deste cenário, a comunidade científica e acadêmica, de maneira geral, criticou a postura do presidente ou, na maioria, não a defendeu – com barulhentas exceções. Com este clima de opinião, a comunidade médica e científica tende a ficar constrangida em argumentar a favor das posturas políticas de Bolsonaro durante a pandemia, o que pode indicar um silenciamento de intenção de voto.
As falas preconceituosas, apologia à violência e o discurso anticiência são apenas três exemplos de situações publicamente bastante visibilizadas que tendem a disseminar um clima de opinião desfavorável em relação a Bolsonaro para importantes grupos de eleitores. Se a maior parte do grupo social integrado por mulheres é crítico de Bolsonaro, uma eleitora dele tende a não se manifestar, ou mesmo ficar em dúvida sobre a decisão de voto. A própria crítica acirrada às pesquisas eleitorais por Bolsonaro pode desestimular que os seus eleitores participem e respondam as perguntas. Este comportamento é explicado pelo conceito de uma autora alemã que estuda pesquisa de opinião, a Noelle Neumann. Para ela, quando menos pessoas dizem que votariam num candidato do que as que realmente votaram, então este partido está sujeito à pressão do clima de opinião. O clima de opinião é medido menos pela pergunta “em que você votaria se as eleições fossem hoje” e mais em “quem você acha que vence ou recebe mais ou menos votos se as eleições fossem hoje”; Bolsonaro tem contra ele um clima de opinião bastante desfavorável. Muitos daqueles que votaram nele, depositaram um voto envergonhado. A vergonha provoca o silêncio nas rodas de amigos, nos grupos de mensageiros e na resposta às pesquisas eleitorais. O inverso também é verdadeiro, a pressão de clima de opinião favorável pode superestimar a intenção de voto. Algumas pesquisas chegaram a indicar vitória no primeiro turno para Lula. Em estudos, na primeira metade do século passado, nos Estados Unidos, houve uma indicação de que a grande visibilidade à mídia ou à influência de líderes comunitários (igreja, clube, escola) levaria o eleitor a ter o desejo de estar do lado vencedor, o que explicaria a adesão na última hora, muitas vezes não identificada em pesquisas de intenção. O estudo The Peoples Choice, de Paul Lazarsfeld, até hoje é referência para pesquisas de opinião pública.
Mas voltando ao Brasil 2022 e a distorção entre as pesquisas de intenção e o resultado das eleições, há mais a ser considerado. Além do silêncio por temor do isolamento do grupo ou da volatilidade do voto para estar com o vencedor, há o fator abstenção. O país teve 20% de ausência, chegando a 32 milhões de eleitores que poderiam votar, mas não foram às urnas. É gente que matematicamente pode alterar o resultado. Se apenas 3% destes eleitores saíssem de casa para votar no Lula, a eleição para presidência estaria liquidada no primeiro turno, como previram as pesquisas. O clima de opinião favorável à vitória no primeiro turno também pode ter surtido efeito, “se já ganhou, não preciso ir votar”. Ou seja, o fator abstenção não foi captado anteriormente, até porque as pessoas normalmente decidem não votar na última hora, por fatores pessoais, financeiros, outros. Para eleitores da periferia e zona rural o custo de ir votar pode ser alto. Entre o deslocamento para o voto e a comida do dia, entre quilômetros até a seção e ficar com a família, talvez muitos tenham optado em não sair de casa. A abstenção foi impulsionada pelo eleitor mais pobre ou de voto opcional, menos de 18 anos e mais de 70 anos.
Vou comentar só mais dois fatores: o medo da violência e a metodologia. Os brasileiros têm sofrido violências diversas que chegam por declarações de autoridades, por mensagens de fake news (mentiras espalhadas com objetivo de desinformar), por dissensos entre amigos, vizinhos e colegas. A polarização política tende a ampliar o silêncio em função do medo não apenas de ficar isolado, mas principalmente de ser vítima de agressões. A violência eleitoral é inibidora da livre manifestação do pensamento e precisamos rever este tipo de opressão, uma mudança cultural urgente. E há o fator metodologia. Neumann que realizou o estudo da espiral do silêncio nos anos 1980, na Alemanha, propõe que mais do que as perguntas de percepção de intenção por retrato, ou seja, a representação do momento, a metodologia possa se diversificar no método painel. Esse é capaz de desenhar um cenário mais amplo e contextual. No painel os pesquisadores acompanham um grupo de eleitores por meses para observar a mudança de comportamento, o clima de opinião e qual a tendência daqueles que não tem convicção em relação ao candidato. A composição da sondagem que traz retrato de diferentes momentos com um painel de monitoramento de decisão poderia indicar uma tendência de migração de votos para um lado ou outro ou mesmo a ausência na urna. A sugestão da autora é que instrumentos que medem o clima de opinião possam “ser usados para se chegar a uma melhor análise dos elementos que levam à formação do voto e nos permita identificar componentes sociopsicológicos.”
Leia a íntegra do artigo Pesquisa eleitoral e clima de opinião de Noelle-Neumann
O que acontece no Brasil, e também precisa ser ponderado, é que os institutos de pesquisas viraram negócios altamente competitivos. Há uma multiplicidade de empresas que prestam este serviço, o que tende a baixar o custo, pois há muita oferta de empresas para pouca demanda. Os institutos para se tornarem competitivos espremem a metodologia, reduzem ao mínimo viável a amostra do eleitorado entrevistado, e o método de coleta (presencial, ligação, mensagem). Eu ouvi a diretora de um instituto renomado no país afirmar que a amostra é definida pela relação custo-benefício. A amostragem de 2 ou 3 mil corre um risco maior de imprecisão do que uma amostragem de seis mil entrevistados. Mas o custo para isso é também três vezes maior, assim como o custo do método painel. Esta discussão está posta, é preciso chamar a academia, empresas de pesquisa de opinião, a justiça eleitoral e os partidos políticos para o debate público sobre quais pesquisas queremos produzir para mensurar a democracia brasileira. Eu não vejo a criminalização dos institutos como um caminho, é preciso elevar a régua de avaliação e não punir o suposto erro. Menos pesquisas, com mais qualidade. Vejo como importante a definição de critérios plausíveis com os quais o Tribunal Superior Eleitoral possa avaliar qualidade e não apenas o registro empresarial e a metodologia utilizada. É possível avançar nesta direção democraticamente? Eu confio que sim. Esta pauta precisa crescer de forma plural e madura para que as pesquisas de intenção de voto não saiam derrotadas de novo nos próximos pleitos eleitorais.