O fato da semana passada foi o Dia de Consciência Negra. Não porque não fosse comemorado antes, mas porque foi pela primeira vez como data nacional. Lúcio Almeida, notável liderança negra universitária da capital gaúcha, diz que eu sou negro “com certeza”. Fiquei espantado, sempre me considerei “moreninho”, pardo talvez. Na verdade, nunca me importei muito com classificações e nunca fui atrás de meus antepassados para saber se havia alguma gota de sangue bugre, o que desconfio, simplesmente porque era pobre e estava preocupado em sobreviver. Por isso, o alerta de spoiler: este é um texto sobre o movimento negro de um observador externo, que não possui lugar de fala, sem militância, mas que é defensor da luta, mas que acredita que o movimento deve responder às críticas que hoje lhe são dirigidas.
Vivemos tempos terríveis. A ascensão da direita na política com seu projeto neoliberal e a sua presença em grandes parcelas da população é uma ameaça a direitos sociais conquistados por todos, inclusive negros. Luto como muitos por uma Frente Ampla de Esquerda capaz de preservar as conquistas e que envolva partidos e movimentos sociais. O fato de a data máxima do movimento negro ter sido sancionada pelo presidente Lula em 2023 é simbólico. De certa forma, sinaliza a ideia deste ensaio: a de que o bom filho deve à casa voltar. No ano em que a crítica das eleições municipais apontou para a conturbada relação da esquerda com os movimentos identitários, o que inclui o movimento negro na chamada “crise do identitarismo”, a saída é o reconhecimento da importância do movimento negro com a indicação às suas lideranças da necessidade do fortalecimento de seu engajamento nas demais lutas sociais de esquerda.
É que as relações entre o movimento negro e a esquerda são antigas e cheias de altos e baixos. O aparecimento do movimento negro nos anos 70 foi um avanço social notável que levou a luta antirracista a se tornar parte importante da agenda da esquerda, que o alavancou nos anos 80 e 90. O que uniu ambos foi o pressuposto marxista de que o processo de produção capitalista não apenas cria mercadorias, mas relações sociais de dominação. Não apenas os trabalhadores são oprimidos pelo Capital, mas também negros, mulheres e comunidade LGBT+. Assim, a relação entre o movimento negro e a esquerda teve repercussões importantes para a análise das relações entre capitalismo e racismo, deu a seus integrantes conteúdos críticos com os quais lutar. A conclusão é que o empobrecimento da população negra decorre da exploração econômica mediada por mecanismos de discriminação racial. Para chegar a essa conclusão, foi preciso desmistificar a ideologia da democracia racial, como fizeram sociólogos como Florestan Fernandes. Com as políticas neoliberais, a exploração e a violência ampliaram-se, basta ver o que aconteceu com João Alberto Silveira Freitas, um homem negro espancado em 2020 no Carrefour em Porto Alegre.
As origens do movimento negro na esquerda
Se no início da formação da esquerda brasileira nos anos 70 não havia um discurso consistente contra o racismo, na década seguinte, as iniciativas do Movimento Negro Unificado levaram a agenda antirracista para o interior da esquerda, quando surge no interior da corrente Convergência Socialista o Núcleo Negro Socialista. Claro que a força do movimento na política de esquerda do Brasil também decorria de sua emergência em outros países, como África do Sul e Guiné-Bissau, e, é claro, nos Estados Unidos. Mas havia uma diferença entre o movimento negro idealizado pelo Núcleo Socialista e parte do movimento negro em geral: o desejo de que sua luta não englobasse apenas o negro, mas todos os que sofrem discriminações, como mulheres, indígenas e comunidade LBGT+. Havia núcleos formados por negros de apoio a outros movimentos sociais e, nessa época, suas lutas se identificavam também com as do movimento operário. Aqui resumo as informações de artigo publicado no site Enfoque PT que diz que:
“O caráter nacional dessa proposta foi efetivado a partir da estratégia da Liga Operária de buscar lideranças negras nos vários estados brasileiros, o que possibilitou a formação de núcleos negros socialistas em São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Rio Grande do Sul e Minas Gerais. A articulação nacional foi realizada por intermédio das comissões estaduais e de um boletim de divulgação interna que informava sobre a conjuntura política e o processo organizativo dos demais movimentos sociais. Com a movimentação de negros de São Paulo e Rio de Janeiro, foi fundada no dia 18 de junho uma organização de combate à realidade de discriminação racial, o MUCDR [Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial]. A assembleia de fundação, realizada em São Paulo, deliberou pelo lançamento público do movimento unificado, sair às ruas com um ato de protesto ao quadro das desigualdades sociorraciais.”
Nesse período, também começaram as divergências entre o movimento negro e a esquerda. A ideia de um movimento unificado não foi consensual e militantes do Centro de Cultura e Arte Negra – CECAN avaliaram a conjuntura de forma diversa do Movimento Negro. Ainda se vivia o tempo da ditadura militar do final dos anos 70 e a divergência estava no fato de que se era ou não o momento de declarar o caráter socialista da luta antirracista. O documento do PT afirma que, após a escolha da data de 20 de setembro como o Dia Nacional de Consciência Negra, a esquerda tinha como objetivo ampliar a consciência social contra o racismo de forma que os não negros pudessem defender a melhoria da vida dos negros brasileiros.
O estopim da divisão
Em junho de 1978, dois fatos mobilizaram o movimento negro organizado. O primeiro foi o tratamento discriminatório contra quatro atletas negros que foram impedidos de frequentar o Clube de Regatas Tietê de São Paulo e o segundo a violência que levou à morte do operário Robson Silveira da Luz. Os fatos precipitaram o lançamento do MUCDR, posteriormente MNU. Em ato público junto ao Teatro Municipal de São Paulo, cerca de 3 mil pessoas repudiaram a discriminação racial e legitimaram a organização do movimento negro. O ato público teve a participação de diversas organizações negras de todo o país que, em 7 de julho, explicitaram sua proposta política de combate ao racismo. Em 27 de julho, uma nova assembleia colocou o problema do movimento negro com a esquerda de reconhecer-se socialista, posição recusada pelo Núcleo Negro de São Paulo e do Rio de Janeiro. Diz o documento:
“A partir desse momento, ocorreu uma cisão entre os negros que estavam organizados dentro da esquerda e aqueles que já haviam rompido com essa organização. O rompimento era justificado a partir do entendimento de que as organizações de esquerda não poderiam dar encaminhamento à luta antirracismo porque não havia prioridade política para a questão racial e também pela composição racial de sua direção, basicamente composta por brancos, o que dificultava a percepção da importância estratégica da luta contra o racismo na sociedade brasileira. Aqueles que continuaram no Núcleo Negro Socialista compreendiam que seria necessário construir uma força política dentro da Convergência Socialista para que a luta antirracista se tornasse uma preocupação da direção; portanto, seria preciso elaborar uma política antirracismo e ampliar o leque da militância na questão racial, absorvendo um maior número de negros para aquela organização.”
O movimento negro divide-se em sua relação com a esquerda entre constituir um movimento autônomo e ser militante dentro de uma organização. Quer dizer, o movimento negro nunca foi totalmente incorporado à esquerda porque ficou dividido entre aceitar os seus princípios políticos e forjar uma frente de luta autônoma. A isso some-se o fato de que, por um lado, havia a dificuldade da esquerda em indicar lideranças negras para sua direção e, por outro, a resistência do movimento negro frente aos limites da organização partidária. Entendo que o problema à época era a busca de autonomia do movimento negro na recusa da tutela da esquerda. O fato de, em 1978, o Movimento Negro Unificado passar a se chamar Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial significou a ruptura da aliança com a esquerda. O movimento passa a ser de fato um movimento negro unificado, distanciando-se da experiência do Núcleo Negro Socialista, cuja contribuição teria sido “a perspectiva de combate ao racismo da teoria de classe, que despertou a consciência negra dos ativistas das organizações de esquerda e fortaleceu o setor do movimento negro brasileiro que ficou mais à esquerda”.
O ponto de divergência entre a esquerda e o movimento negro foi apontado por Carlos Moore em sua obra Marxismo e a Questão Racial (Nandyaia, 2010). Para ele, “um negro era, no pensamento de Marx e Engels, sinônimo de coisa”, quer dizer, o conflito de natureza ideológica, de interpretação entre as lideranças do movimento negro, intelectuais e sindicalistas, a base de sua visão de mundo, de sua cultura. Esta tensão ideológica permeou a relação entre esses dois blocos políticos: os que concebiam uma visão política estratégica, cujo eixo central defendia a luta política contra o racismo, e o setor que concebia a sua principal estratégia era a priorização da luta mais geral pela democratização da sociedade brasileira na perspectiva de construção do socialismo. A questão é que “os que consideravam a perspectiva socialista secundarizavam a luta travada pela militância negra do movimento negro.” Enquanto o proletariado era a classe revolucionária, o movimento negro não se sentia à vontade como projeto alternativo, ainda que, na porta de fábrica, houvesse inúmeros negros pelos quais lutar.
A crítica ao identitarismo negro
Elisabeth Roudinesco, em O Eu Soberano: ensaio sobre as derivas identitárias (Zahar, 2021), afirma que, vinte anos depois, os movimentos de emancipação europeus mudaram de direção, “já não se perguntam como transformar o mundo para que ele seja melhor, mas dedicam-se a proteger as populações daquilo que as ameaça: desigualdades crescentes, invisibilidade social, miséria moral”. Não teria acontecido com o movimento negro brasileiro algo similar nos anos seguintes que explica agora a sensação atual da esquerda em relação a eles? Suas reivindicações também não têm se caracterizado pelo que ela descreve como “luta-se menos pelo progresso [e mais] exibem seus sofrimentos, denunciam as ofensas como marcadores identitários que exprimem um desejo de visibilidade, seja para afirmar sua indignação, seja para serem reconhecidos?”. Nesse ponto, como diz a chamada do programa de Mário Sérgio Conti no Globo News, “a esquerda está pronta para mexer nesse vespeiro?”, isto é, recuperar para si em nome da solidariedade de classe, em nome da luta por uma Frente Ampla de Esquerda que envolva todos, inclusive o movimento identitário negro que um dia foi mais presente em seu interior? É que é preciso coragem para fazer isso, assumir o lugar de espelho desses movimentos. E isso é, digamos, mexer no “vespeiro” do movimento negro, criticar um movimento que já conquistou um notável espaço de poder e que por isso não é muito receptivo às críticas.
A função de espelho é definida pela psicanálise como uma metáfora da posição do analista em relação ao analisado. Nos termos de Roudinesco, hoje, frente ao avanço neoliberal, a esquerda, como um espelho, precisa fazer ver aos seus integrantes no que se transformou o seu movimento negro. Como na descrição do estágio do desenvolvimento da criança em que ela se reconhece como um ser separado do mundo, é preciso exatamente o contrário, que a esquerda mostre ao movimento negro que ele não é separado dos demais grupos sociais, ao contrário. Como diz Lacan, o estágio do espelho é uma estrutura permanente da subjetividade que introduz a Alteridade, isto é, o Outro cujas críticas nem sempre são bem aceitas pelo analisado. O sintoma de que o quadro descrito por Roudinesco aplica-se à realidade nacional está no fato de que, como ela acentua, são as artes e a literatura as primeiras a manifestarem a força do movimento identitário. Não é exatamente esse o quadro da emergência de uma notável literatura negra nacional, como mostrou aqui em Sler o artigo de Andrea Schefer no último dia 21 de novembro?
O tema da crítica ao identitarismo da obra de Roudinesco partiu de uma observação da autora de uma afirmação do historiador dos movimentos sociais Gérard Noiriel, que constatou que as salas dos arquivos estavam sendo mais visitadas por amadores de história preocupados em “contar a história de sua aldeia, de seus ancestrais, de sua comunidade” do que por historiadores profissionais”. Para Roudinesco, a iniciativa revela uma autoafirmação de si que se transformou em hipertrofia do eu “o sinal distintivo de uma época em que cada um tenta ser si-mesmo como um rei, e não com um outro”. Para Roudinesco, seu efeito é o isolamento. Não é assim que a esquerda vê os movimentos identitários? Não é assim que a esquerda vê o movimento negro em relação a si mesma?
O dilema da identidade
Para Roudinesco, das várias definições de identidade, duas são possíveis: a primeira é a que diz “eu dependo dos outros para saber quem sou” e a segunda, a que diz “Eu sou eu e isso é tudo”. A primeira é uma identidade múltipla e inclui o outro; a segunda é uma identidade de pertencimento, onde “então o sujeito é reduzido a uma ou várias identidades hierarquizadas”. Nos termos de Roudinesco, a identidade negra pode ser vista como aquela que tende a acabar com a Alteridade, reduzindo a experiência do negro a uma experiência específica. Entendo que ela sugere aqui que o negro deixa de ser parte de uma das vítimas do Capital para ser “a” vítima.
Na origem dessa transformação, a autora descreve a evolução da ideia de raça “depois de ter sido descartada do discurso da ciência e das humanidades em 1945, ela foi resgatada pelos estudos chamados “pós-coloniais”, subalternistas e “decoloniais” (…) instrumentos conceituais forjados com rara acuidade foram reinterpretados ao máximo a fim de sustentar os ideais de um novo conformismo da norma” que, entre outras consequências, segundo a autora, trouxe a fetichização do passado, a execração do presente, misturando rejeição do Outro com racialização das subjetividades. Seu princípio é “Eu sou, isso é tudo”. Roudinesco completa dizendo que isso acontece “sem contestar a diversidade das comunidades e nem transformar o universal ou a diferença em essência”. Nesse sentido, a autora retoma a linha de Levi Strauss e afirma que, paradoxalmente, a uniformização do discurso negro tem com risco levar à “sua extinção e fragmentação das culturas” (p. 12). E completa: “Nada tem efeito mais regressivo para a civilização e a socialização do que reivindicar uma hierarquia das identidades e dos pertencimentos. Claro que a afirmação identitária é sempre uma tentativa de combater a supressão de minorias oprimidas, mas ela atua por meio do excesso de reivindicação de si, quiçá por um desejo louco de não se misturar mais com nenhuma outra comunidade, exceto a sua” (p. 20).
É nesse sentido que a crítica ao identitarismo negro emerge no pensamento de Roudinesco e explica o sentimento da esquerda nestas eleições. Cabe ao movimento negro a leitura atenta de sua crítica e reflexão, se a considera pertinente ou não. O que Roudinesco quer sugerir é que o que leva ao limite a luta pela defesa da identidade negra é que ela termina por inventar um novo ostracismo para aqueles que não serão incluídos nesse entre-si específico. Ela afirma que “como não ver que é exatamente o mecanismo de designação identitária que leva os negros e os brancos a rejeitar os mestiços, tratados como “mulatos”, os mestiços a reivindicar a “gota de sangue” que permite que se incluam num campo e não no outro”? E finaliza: “No coração de todo sistema identitário há sempre o lugar maldito do outro, irredutível a qualquer designação e destinado à vergonha de ser si mesmo” (p. 21).
Narcisismo negro?
Roudinesco fundamenta sua crítica naquilo que o escritor Christopher Lasch chamou de “cultura do narcisismo” (Imago, 1983). Lasch observou que o capitalismo engendra patologias impossíveis de erradicar e que a Psicanálise, ao converter o sujeito em vítima de si mesmo, tornou os indivíduos “incapazes de se interessar por outra coisa além do próprio umbigo” (idem). Também fundamenta sua crítica no exemplo trágico de Narciso que, “fascinado pelo próprio reflexo, caiu na água e afogou-se, pois não conseguiu compreender que a imagem não era ele próprio” (p.21). Nesse sentido, cabe ao movimento negro responder se ele não vive um momento em que se revela incapaz de solidarizar-se com outros movimentos sociais, se ele não encarna, como ela diz, a atualização do destino trágico de Narciso. Quer dizer, se o movimento negro não conseguir se colocar no lugar do outro, de perceber que é tão oprimido quanto a mulher, o índio, os LGBT+, não conceber que sua luta não é apenas individual, mas coletiva, não reconhecer seu dever de estar presente nas demais lutas sociais, nos termos de Roudinesco, “ele se condena à morte. E também se torna dependente de uma ancoragem identitária moral, que o leva a necessitar dos outros para estimar-se a si mesmo, sem com isso conceber aquilo que é uma verdadeira alteridade” (p. 22). Entendo que essa formulação coloca a seguinte questão: o movimento negro deseja o engajamento dos demais em sua luta, mas até que ponto ele mesmo se dispõe a se sacrificar pelo bem dos outros movimentos?
Na concepção de Roudinesco, o movimento negro precisa avaliar o estágio em que se encontra em relação aos demais movimentos sociais. Se o outro tiver sido assimilado como inimigo e só existir o negro, não há alteridade e o movimento está perdido. É claro que o movimento negro não se vê como inimigo de quaisquer movimentos, mas sua aparente indiferença com relação a eles não é um sintoma? Ela pode ser vista na obsessão do movimento por tornar visível a produção negra, o trabalho negro, a criação negra, sintomas da busca de refúgio do movimento em seu próprio território, o que é, nos termos de Roudinesco, também expressão do “credo de uma sociedade ao mesmo tempo depressiva e narcísica, cuja nova religião seria a crença na terapia da alma baseada no culto de um ego hipertrofiado” (p.22, grifo nosso). Isso não acontece no Brasil atual da mesma forma como Lash o descreve, segundo Roudinesco, para a sociedade americana? Lá, pensar o futuro servia para prevenir-se de desastres, armar-se contra a adversidade, pois os atores estavam acuados frente à catástrofe. Aqui, construir a imagem da vitória do movimento negro é sua forma de armar-se contra a adversidade.
Não se pode falar assim também das expectativas que o movimento negro tem da sociedade? Em 2006, o sociólogo Antônio Guimarães, respondendo à pergunta se o Brasil é um país racista (FSP, 18/11/2006), respondia que sim porque existiam “práticas que diminuíam as oportunidades dos negros de competir em condições de igualdade com pessoas mais claras”. Se, naquele tempo, Guimaraes dizia que era difícil encontrar negros presentes na TV, hoje essa situação mudou ou estou enganado? Há conquistas hoje que são mérito do movimento negro, que não precisou da esquerda para atingi-las, ainda que, como diagnostica o autor, eles ainda sejam as vítimas preferenciais da violência policial. Para Guimaraes, o problema é que vivemos o racismo como consequência das classes de cor no sentido weberiano. Aqui, eu quero retomar o papel do movimento negro não no sentido de classes de cor, mas de classe social. Por outro lado, como a historiadora Mary Del Priori defende, o racismo também mudou. Se Guimaraes considera que houve uma passagem do debate “de raça” para “cor”, Priori enfatiza que a verdadeira passagem foi “de raça” para “cultura”. Agora, o fator cultural é fonte de diferença e conflito. Não é exatamente isso, a ideia de cultura, a de algo que pode ser reelaborado para melhor ou pior? Não foi esse o caso às avessas de Sérgio Camargo, homem negro no comando da Fundação Palmares, que defendia ideias como a escravidão foi benéfica para… os negros? Esse não é o exemplo inverso de como a cultura pode determinar as crenças e as ideologias?
Retomar a luta em comum
O papel da esquerda é colocar uma pergunta para o movimento negro que é: a luta do movimento negro não teria deixado de ser uma luta contra o Capital para se tornar uma luta pela preservação de si? E, nesse sentido, se o movimento foi uma vitória da identidade negra, isto é, colocou o tema da desigualdade negra na agenda política, ao mesmo tempo, não foi a razão de sua perda de sua identidade geral com os demais grupos oprimidos? Para Roudinesco, “a cultura identitária assumiu progressivamente o lugar da cultura do narcisismo e tornou-se uma das respostas ao enfraquecimento do ideal coletivo” (p. 23). Não é assim que se sentem as novas vítimas dos tempos atuais, a esquerda, que observa sua derrota também como efeito da substituição das lutas sociais em que se estava envolvida da cabeça aos pés pelas lutas societais protagonizadas por negros, mulheres, indígenas, grupos LGBT+? Antes, ser de esquerda era parte da identidade de uma geração antissistema: usavam-se roupas com a imagem de Che Guevara, andava-se com exemplares do Capital, de Marx, e partilhava-se a ideia de que o sistema precisava ser mudado. Agora não basta ser de esquerda, é preciso ser identitário. Na comunidade negra, agora cada particularidade da cultura é reforçada, a roupa, o penteado, que “remete a uma designação identitária, segundo o princípio geral do conflito entre si e os outros” (p.23).
Assim, parafraseando Roudinesco, a cultura de identidade introduz procedimentos subjetivos e comportamentais nas experiências de vida e organização política. O modo de vida negro, como o indígena e o LGBT+, torna-se o novo fetiche. Já há especiais da Rede Globo dedicados a eles, com muito glamour, prova de que eles também podem ser assimilados pelo status quo. A culinária negra ou indígena ganha destaque em oposição a qualquer outra. É como a tentativa de reunião de amigos para um jantar descrito por Roudinesco e que se tornou impossível porque “cada um estava disposto a vir na hora que lhe fosse conveniente, com a condição de trazer os seus próprios alimentos e a bebida de sua escolha. De resto, eram todos simpáticos, inteligentes, refinados, muito cultos.” Não é assim com os movimentos identitários? Não são todos simpáticos, mas incapazes de sentar na mesa de jantar da esquerda porque são incapazes de ceder algo de sua identidade em nome da luta coletiva? Roudinesco também lembra que, quando Michel Foucault chegou a Vincennes em 1969, sempre lhe perguntavam “de onde você fala”? Para Roudinesco, a pergunta fundamental da identidade é também policialesca: “Mostre sua identidade, diga em nome de quem vai circular, para que possamos reconhecer onde você está” (p.24). Não é assim que o movimento negro reage a críticas de… brancos, supostamente considerados incapazes de reconhecer seu campo de problemas por não estarem em um “lugar de fala”?
Enquanto busca a consolidação de uma Frente Ampla Esquerda, cabe à esquerda atual reposicionar-se hoje em relação ao movimento negro, assumir o combate ao racismo como um de seus eixos principais. Mas também, novamente, o filho deve retornar à sua casa. Pois o que une a frente onde também deve estar o movimento negro é a luta contra a desigualdade em todas as formas, inclusive a racial. Na luta contra a direita, a concepção antirracista é uma base importante, “voltar a casa” significa que o movimento negro também precisa fazer a lição de casa, entender que não poderá fazer a luta contra a direita sozinho. A emancipação de um passa pela emancipação de todos. Nesse momento, os militantes negros de esquerda têm a obrigação de aproximar e construir um programa que sirva de base para a Frente Ampla de Esquerda, de ir em busca dos negros evangélicos de direita apontados por Jessé Souza em seu O pobre de direita (Civilização Brasileira, 2024) para trazê-los para a esquerda, para a Frente, unificando as lutas que, ao longo do tempo, tornaram-se isoladas. Parafraseando o filósofo esloveno Slavoj Zizek “vamos lá, você já se divertiu bastante com o isolamento social do movimento antirracista e está perdoado por isso – está na hora de levar a vida a sério outra vez!”
Todos os textos de Jorge Barcellos estão AQUI.
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