Em uma corrida de Cross-country, o queniano Abel Muttai estava a um passo de vencer, mas se confundiu na linha de chegada. Logo atrás, vinha o espanhol Ivan Anaya que tentou alertá-lo. O queniano não entendeu e foi preciso que aquele o empurrasse para que vencesse. Mais tarde, um jornalista desejou saber por que o espanhol havia feito aquilo, mas ele sequer entendeu a pergunta. Aquilo o que? – devolveu. – Deixar o queniano ganhar. – Eu não deixei, ele ia ganhar.
Diante do espanto de seu interlocutor, o espanhol emplacou três perguntas: a primeira foi qual seria a honra de uma vitória como essa. A segunda, qual o mérito de uma suposta medalha ganha assim. A terceira, o que a sua mãe acharia se o fizesse.
Uma ética ou algo parecido não existe de forma solitária. A sua origem não pode ser autônoma, por geração espontânea. Em se tratando de gente, o que mais importa é sempre relacional, ou seja, um dia veio do outro. Daí a responsabilidade de uma figura materna (ou paterna), cujo exemplo, muito além das palavras, transmite-se para o bem, para o mal ou para um suficiente mais ou menos.
Houve lá atrás este outro que deu um jeito de esgueirar-se e ocupar em cada um de nós um lugar simbólico vociferante e, por isso, ainda mais necessário. Ele é que nos protege da concretude de uma postura que ignorasse o outro, justamente porque não fomos ignorados. Assim nasce uma empatia que depois circula vida afora, como no encontro do queniano e do espanhol. Aquela história enfim começara muito antes, dando crédito à noção psicológica de que nunca é exatamente agora.
Há casos tristes em que a mãe foi indiferente com os outros, incluindo o filho, que fará o mesmo, ou seja, nada irá fazer pelo outro, sempre que for convocado para os embates gregários. Felizmente, há mães como a do espanhol, capazes de imprimir e gravar uma voz empática, solidária.
Há também a raridade de um outro tipo de mãe que consegue ir além: não bastando transmitir um senso ético, ela também permite que a voz do filho não a ouça. Não para atropelar os outros, mas para, depois de devidamente captada a ética básica, agir conforme a sua própria consciência sussurrar, agora sim por si mesma. No caso do espanhol, depois de fazer justiça com o queniano, ele guardaria a medalha de prata, tomaria um banho quente (ou frio), e retomaria naturalmente a sua vida, conforme os próprios desejos, sem necessidade de agradar a mãe ou quem quer que seja. Essa, dentro dele, continuaria falando algo dividido entre a decepção de seus ideais maternos e o orgulho diante daquela desobediência, expandindo a sua ética para torná-la mais completa.
Foto da Capa: Reprodução do Youtube
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