A demanda por informações sobre o abastecimento de alimentos em Porto Alegre, leva-nos a falar sobre o assunto. As pessoas querem saber como e onde ocorreram estas práticas na cidade.
As primeiras descrições partiram dos franceses Nicolau Dreys (1781-1843), que aqui morou entre 1817 e 1826, e Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853), que visitou a povoação em 1820. Nicolau Dreys, que era comerciante, praticamente não trata do assunto. Apenas destaca os locais de comércio, sem especificar as atividades:
“(…) a rua mais extensa, e a mais importante, em respeito ao comércio e à população, é a da Praia, que se prolonga em torno do morro Oeste, à borda da lagoa; nesta rua, formada por casas geralmente altas, de estilo elegante e moderno, quase todas habitadas por negociantes, é que parece se ter concentrado o negócio, deixando às outras classes da sociedade as ruas abertas sobre os planos superiores. Ali está o edifício moderno da alfândega e seu extenso trapiche sobre a lagoa (…)” (NOAL FILHO & FRANCO, 2004, p. 35).
Através de Sergio da Costa Franco (1928), um dos mais confiáveis estudiosos de Porto Alegre, sabe-se que em 1781, na rua da Praia, foi construída uma pequena banca de peixe (FRANCO, 2018, p. 267).
Nos primórdios, a atual Praça da Alfândega foi chamada de Largo da Quitanda. Franco cita a ata de vereança de 2 de julho de 1783, na qual os membros do Senado da Câmara mandaram fazer aquele que seria o primeiro embarcadouro (Idem, p. 21-22). Diz que, em 1804, o Governador Paulo da Gama, mandou erguer cais e trapiche para o desembarque de gêneros e serventia pública, e mostra a euforia causada em Manoel Antônio de Magalhães (1760-c.1830), que descreve o local no seu Almanaque da Vila de Porto Alegre, como “belíssima ponte d’alfândega, obra prima, como não há outra em toda a América, com vinte e quatro pilares de cantaria pelo rio dentro (…), defronte da mesma casa d’alfândega, onde uma boa praça convida à beleza e construção da obra” (FRANCO, apud MAGALHÃES, 2018, p. 22).
Auguste de Saint-Hilaire foi mais objetivo no seu livro “Viagem ao Rio Grande do Sul” (1888), descreve aquilo que presenciou:
“É na rua da Praia, próximo ao cais, que fica o mercado. Nele vendem-se laranjas, amendoim, carne seca, molhos de lenha e de hortaliças, principalmente couve. Como no Rio de Janeiro, os vendedores são negros. Muitos comerciam acocorados junto à mercadoria à venda, outros possuem barracas, dispostas desordenadamente no pátio do mercado. Veem-se também aqui trapeiros pelas ruas. Atualmente vendem muito o fruto da araucária a que chamam pinhão, nome semelhante ao das sementes de pinheiro na Europa.” (SAINT-HILAIRE, 1974, p. 43).
O autor refere-se ao cais da Alfândega, isto é, no Largo da Quitanda. Cabe esclarecer também que o pinhão é uma semente e que a araucária é uma gimnosperma.
Sérgio da Costa Franco lembra que precisamente, em 1820, foi determinada a compulsória remoção dos quitandeiros para a Praça do Paraíso, hoje Praça XV de Novembro (FRANCO, 2018, p. 23). Houve resistências, a Câmara cedeu, permitindo que transitoriamente, o lado oeste do logradouro fosse reconhecido como local de mercado. A implantação do prédio da Alfândega, resguardando os interesses do comércio, de ter acesso a ele e ao trapiche, acabaram com as pretensões de ali levantar barracas ou outras construções provisórias como explica este autor (FRANCO, Idem). O trecho entre o Largo da Quitanda e a Praça Paraíso, na costa do Guaíba, acabou recebendo barracas irregulares de quitandeiros.
A solução para o problema se deu com a construção de um prédio para abrigar o primeiro mercado na Praça do Paraíso (que se chamou então de Praça do Mercado), na administração provincial do fluminense Saturnino de Souza e Oliveira Coutinho (1803-1848), que ficou pronto em 1844, tendo sido inaugurado no dia 1º de outubro daquele ano. Franco esclarece que o município participou de uma sociedade para erguê-lo (1842), e que “os vereadores resistiram um pouco à localização escolhida (…) porque, na sua face leste, não acompanharia o alinhamento da Rua de Bragança” (atual Rua Marechal Floriano). Descreve que o primeiro mercado, um “prédio de planta quadrada, em alvenaria de tijolos e com portões de ferro, localizou-se, aproximadamente, no local hoje ocupado pela parte ajardinada da Praça XV de Novembro” (FRANCO, Ibidem).
Duas décadas e meia depois seria inaugurado o mercado público atual (1869). A edificação foi realizada sobre um aterro específico para tanto, na frente do Largo do Paraíso, com espaços de circulação ao redor e com uma doca de cada lado (uma para receber os barcos que traziam frutas e verduras, voltada para a atual Praça Parobé, e outra chamada de doca do carvão, voltada para o lado da atual Avenida Borges de Medeiros). Inicialmente o edifício, de planta quadrada, contou com um pavimento térreo e com torreões nas esquinas. Possuía um pátio interno contendo chalés de madeira, destruídos posteriormente em um incêndio. O projeto, de 1864, é de autoria do engenheiro alemão Johann Friedrich Heydtmann (1802-1876). O segundo piso foi construído em 1912, numa linguagem eclética, momento no qual, aproveitando-se dos acessos nos eixos de simetria das fachadas, e adquirindo bancas em estrutura metálica, definiu-se uma planta de circulação em cruz onde outrora fora o pátio. Coberto na altura do primeiro piso, passou o restante do século XX com os dois pisos separados. No pavimento superior, calçadas expostas às intempéries, davam acesso aos diversos compartimentos. Assim permaneceu até o início da década de noventa do século XX. A falta de controle por parte do município fez com que paulatinamente se cobrisse todo o térreo e que a ocupação fosse descontrolada. Pelo significado para a cidade, tornou-se patrimônio cultural municipal, em 1979. Na década de 1990, passou por uma grande reforma, iniciada na administração municipal de Olívio de Oliveira Dutra (1941) e concluída na administração municipal de Raul Jorge Anglada Pont (1944), quando recebeu a cobertura que permitiu integrar os dois pavimentos.
Sérgio da Costa Franco lembra que outros mercados implantados pelo município se revelaram efêmeros. Cita primeiramente o pequeno mercado construído em 1905, na Praça Garibaldi, às margens do Riacho (Arroio Dilúvio), que passava pelo local, com quatro tabuleiros e banca de peixe, dotado de escada para o Riacho, com degraus de granito e alvenaria de cimento. Este autor recorda que na mesma praça, a administração de Célio Marques Fernandes (1913-1989), construiu outro mercado de curta duração, demolido para a abertura da Avenida Erico Verissimo (FRANCO, 2018, p. 269). Do mesmo modo, Franco nos faz lembrar que também não sobreviveu o mercado implantado no local da atual Praça Athos Damasceno, no encontro das Ruas Bordini e Quintino Bocaiúva (FRANCO, Idem, p. 269).
Cabe destacar a construção do Mercado do Bom Fim, em 1938, situado no encontro da Avenida Osvaldo Aranha com a Rua José Bonifácio. Foi o único que conseguiu se manter fora da área central. Acabou sendo demolido na década de 1990, depois de interditado por risco de incêndio. Reconstruído, foi reinaugurado no ano de 2000, e continua em plena atividade.
A falta de espaço no mercado público existente e o aumento da população da cidade fez com que na década de 1930, a administração municipal viesse a pensar na construção de um novo mercado para abastecimento de frutas e verduras. Em 2 de setembro de 1933, Christiano de la Paix Gelbert (1899-1984) apresentou o projeto de um mercado livre a ser construído na esquina da Avenida Osvaldo Aranha com a Rua Venâncio Aires, onde hoje se encontra o Hospital de Pronto Socorro (1942), na forma de uma galeria composta de um telhado de quatro águas apoiado em colunas jônicas, que acompanharia a curva da esquina, em ângulo agudo. Bancas acompanhariam perifericamente a construção e teria sanitários anexos ao conjunto. Segundo Taís Festugato, esta ideia não prosperou (FESTUGATO, 2012, P. 107). No site da Secretaria Municipal da Indústria e Comércio (SMIC), consta que teria funcionado de 1928 a 1938, um mercado com 49 bancas onde hoje se encontra o Hospital de Pronto Socorro. Certamente não deve ter sido o apontado por Festugato.
Um novo projeto, datado de 17 de fevereiro de 1937, com alteração feita em 22 de junho do mesmo ano, acabou sendo construído e inaugurado em 1939 (FESTUGATO, Idem, p. 107). O local a ser implantado foi o terreno retangular existente entre as Avenidas Mauá, Borges de Medeiros e Júlio de Castilhos, onde atualmente se encontra a Praça Revolução Farroupilha. Taísa Festugato, na sua dissertação de mestrado, descreve o edifício (FESTUGATO, Ibidem, p. 108 a 111). De planta retangular (90m x 30m), simétrica nas duas direções, tinha as entradas principais voltadas para o Guaíba e para o Mercado Público, protegidas por marquises em concreto armado. No lado voltado para o Guaíba, foram colocadas letras no estilo Art Déco, compondo o nome “Mercado Livre”. Aliás, o estilo da edificação era o Art Déco. Nas fachadas laterais encontravam-se os acessos secundários, também no eixo de simetria das respectivas fachadas, repetindo a solução das entradas principais, porém mais baixos que aquelas. O volume era tripartido horizontalmente, sendo os acessos principais definidos por um corpo elevado, perpendicular ao volume básico, com um frontão escalonado, onde se destacava um arco ogival abatido, subdividido por quatro pilares, no estilo Tudor, preenchido por janelas basculantes. Também nas alas laterais foram usadas Janelas basculantes elevadas, proporcionando boa iluminação aos espaços internos. Um grande vão livre estruturado com tesouras cobria o hall central. Neste espaço central as tesouras eram perpendiculares às existentes nas alas laterais, e sendo mais altas, permitiram realizar lanternins para explorar a ventilação natural. Assim, o espaço interno era totalmente livre, proporcionando a disposição das bancas serem voltadas para os acessos.
O Mercado Livre esteve ameaçado de demolição quando tinha apenas cinco anos de uso, momento no qual cogitou-se erguer um edifício moderno para a sede da Viação Férrea do Rio Grande do Sul, projetado pelo consagrado arquiteto carioca Affonso Eduardo Reidy (1909-1964). Na década de 1970, foi demolido. O terreno abrigou provisoriamente um estacionamento explorado pelo poder público municipal para arrecadar recursos para o Movimento Assistencial de Porto Alegre (MAPA). Posteriormente, passou a abrigar, no subsolo, parte da estação central (Estação Mercado) do metrô de superfície TRENSURB, e a Praça Revolução Farroupilha.
A cidade ficou temporariamente sem um abrigo para a atividade que exercia o Mercado Livre. Naquela época estavam aterrando a região da Praia de Belas, prolongando a Avenida Borges de Medeiros e construindo o estádio do Sport Clube Internacional. A atividade foi então transferida para o prolongamento da Avenida Borges de Medeiros, na altura do entroncamento desta com a Avenida Aureliano Figueiredo Pinto, ocupando a área onde hoje se situa o Corpo de Bombeiros e as adjacências. Barracas provisórias foram construídas na região que se transformou, de uma hora para outra, numa espécie de mercado persa. A lembrança que vem é a de muita confusão e sujeira.
Anexo à Praça Rui Barbosa também foi construído um mercado chamado de provisório, que pouca importância e utilidade teve. Desapareceu quando o logradouro recebeu terminais de ônibus metropolitano e o camelódromo da cidade. Ficava no trecho entre a Avenida Mauá e a Avenida Júlio de Castilhos.
Para centralizar o abastecimento da região metropolitana de Porto Alegre e facilitar o acesso dos hortifrutigranjeiros, foi concebida a sede da Central de Abastecimento (CEASA), em 1970, pelos arquitetos Carlos Maximiliano Fayet (1930-2007), Cláudio Luiz Araújo (1931-2016) e Carlos Eduardo Dias Comas (1943). Situa-se nas proximidades do entroncamento das mais importantes rodovias do Estado, as BR 101 e 216, na Avenida Fernando Ferrari, 1001, no Bairro Anchieta, nas imediações do Aeroporto Internacional Senador Salgado Filho. Ocupa um terreno de 71,5 hectares. Junto ao pórtico de acesso encontra-se uma rotunda em torno da qual ficam o estacionamento e as edificações principais do complexo. No eixo central, no sentido Norte-Sul, encontra-se a edificação principal, o chamado “Pavilhão dos Produtores”, obra referencial da última fase da arquitetura moderna do Brasil Meridional. Nos flancos do terreno localizam-se os chamados “Pavilhões dos Comerciantes”, dispostos em três sequências. Ao lado do Pavilhão dos Produtores, situam-se o restaurante e galeria de lojas, voltados para uma praça destinada a exposições. As demais edificações destinadas a abrigar a Portaria, a Administração o setor de Metrologia e a Manutenção foram implantadas em locais compatíveis com a funcionalidade do conjunto. Para cobrir as edificações, concluiu-se pela utilização de estruturas de cerâmica armada, desenvolvidas pelo engenheiro uruguaio Eladio Dieste (1917-2000), motivo pelo qual, foi chamada a participar a empresa Dieste y Montañez, sob a responsabilidade de Eladio Dieste e Eugenio Montañez (1916-2001), aqui representada pelo arquiteto uruguaio Alfredo Alvarez Lay (1935-2017). Alberto Xavier (1936) e Ivan Mizoguchi (1943) descrevem sobre a atenção dada à solução da cobertura do Pavilhão dos Produtores, “constituída por lajes e mísulas de concreto armado em balanço, cobrindo as zonas de carga e descarga ao longo das laterais do prédio e por 56 módulos de abóbadas de tijolo armado de dupla curvatura, com vão de 25,4 m, sobre a área de comercialização” (XAVIER & MIZOGUCHI, 1987, P. 246). As coberturas dos Pavilhões dos Comerciantes foram feitas com “abóbadas autoportantes de tijolo, com vãos centrais de 20m e balanços de 5m, que abrigam as plataformas de carga e descarga” (XAVIER & MIZOGUCHI, Idem, p. 246).
Para concluir, devemos lembrar que uma das características do abastecimento de hortifrutigranjeiros em Porto Alegre é a existência das feiras de bairro, que ocupam uma vez por semana, logradouros estratégicos da cidade. Mais do que feiras são também pontos de encontro dos seus moradores. Dentre as feiras de rua, merece destaque a que ocorre sábado, na Rua José Bonifácio, pelo significado que possui no contexto da cidade.
Notas:
FESTUGATO, Taísa. A arquitetura de Christiano de la Paix Gelbert em Porto Alegre (1925-1953) (dissertação de mestrado orientada por Cláudio Calovi Pereira). Porto Alegre: Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – PROPAR, Setembro de 2012.
FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre: guia histórico. Porto Alegre: Ed. Edigal, 5ª edição (revisada e ampliada), 2018.
MAGALHÃES, Manoel Antônio de. Almanak da vila de Porto Alegre. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1908.
NOAL FILHO, Valter Antônio & FRANCO, Sérgio da Costa. Os viajantes olham Porto Alegre: 1754-1890. Santa Maria: Anaterra, 2004.
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul, 1820-1821 (tradução de Leonam de Azeredo Penna). Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. USP, 1974.
XAVIER, Alberto & MIZOGUCHI, Ivan. Arquitetura Moderna em Porto Alegre. São Paulo: Ed. Pini, 1987.