Donald Trump voltou e pode ser o próximo presidente dos EUA, não há mais dúvidas disso. Na última semana, o homem com pele e cabelos alaranjados participou de um debate com John Biden, atual ocupante da Casa Branca. Dado como vencedor do embate, chamou atenção a quantidade de mentiras que Trump despejou: foram 30 mentiras em cerca de 40 minutos de fala, como apurou a CNN. Feitas as contas, fica a dúvida, será que ele falou alguma verdade nesse período?
A estratégia do pré-candidato republicano foi se mostrar enérgico para marcar o contraste com um Biden envelhecido e muito menos dinâmico. Como definiu o humorista Ricardo Araújo Pereira em sua coluna na Folha de São Paulo:
“Enquanto Biden parecia ausente, Trump estava, tragicamente, mesmo muito presente. A eleição vai ser entre uma pessoa que parece ter abandonado o mundo dos vivos e outra que mantém alguma energia para dizer as coisas mais estapafúrdias, falsas, ou estapafúrdias e falsas.”
Confesso que o tema me intriga, tanto que escrevi sobre ele na obra “Psicologia, Comunicação e Pós-Verdade”, organizada por Pedrinho A. Guareschi, Denise Amon e André Guerra, publicada em 2017 e que está na terceira edição. O ensaio que escrevi é “Trump e a Política Pós-Verdade” e um dos capítulos dele é intitulado “Trump e a mentira”.
O postulante à Casa Branca sempre se caracterizou pelo exagero, pela disposição de estar na mídia a qualquer preço, apelando para o exagero e o estardalhaço. Trump usa a mentira como um recurso político, em campanha ou governando. Uma das ideias é fabricar tantas declarações absurdas que o debate fica inviabilizado. A democracia pressupõe um mínimo de ideias e realidades em comum, desaparecendo isso, não há mais a possibilidade de uma conversa civilizada, surgindo um terreno propício para que se fale qualquer coisa sem contestação, por mais irreal que seja.
Há método nessa atitude, nada é aleatório, por mais que pareça. A socióloga israelense Eva Illouz aponta que, para que os seguidores de Trump acreditem nele, seu discurso não necessita ser verdadeiro ou mesmo baseado em algum fato, basta que eles “sintam que é verdadeiro”.
As emoções irão se conectar às narrativas coletivas que os seus seguidores aderem, estabelecendo um vínculo emocional entre eles, permeando a política de emoções positivas e negativas, amor e ódio. A narrativa oferecerá uma explicação dos problemas que a sociedade enfrenta, conectando as causas e os efeitos de cada situação, atribuindo culpas e responsabilidades e oferecendo situações.
Esse trabalho foi incrivelmente facilitado pelas redes sociais, que permitem a transmissão rápida dessas histórias, ao mesmo tempo em que criam bolhas que as replicam incessantemente, criando o “viés de confirmação”. O absurdo das declarações vai sendo suavizado por sua repetição e pela criação de memes, vídeos e outros relatos que irão reforçar as crenças do grupo. É uma relação circular na qual as crenças ficam mais fortes por causa do grupo e o grupo se fortalece ao acreditar nas mesmas coisas.
Trump utiliza com maestria esse mecanismo, aderindo a teorias conspiratórias da Internet para dar lastro às suas declarações. Ele já replicou a mentira de que Obama não havia nascido nos EUA, que vacinas causam autismo e que o aquecimento global é uma farsa. No último debate, seus alvos preferenciais foram os imigrantes e o aborto.
O aborto tem sido um dos núcleos das chamadas “questões morais” ou “pauta de costumes” que unem o eleitorado religioso e conservador. O tema é central na agenda religiosa-conservadora e o direito ao aborto, estabelecido desde os anos 70 nos EUA, perdeu a proteção constitucional e vem sendo restringido por legislações estaduais semelhantes ao chamado “PL do estuprador” proposto aqui no Brasil.
O aborto é um tema que fortalece a união do grupo em torno do seu líder e suas ideias. Não por acaso, Trump acusou os democratas de apoiar o aborto até ao nascimento: “Eles tirarão a vida de uma criança no oitavo mês, no nono mês, mesmo após o nascimento”.
A acusação que os democratas apoiam o aborto a qualquer momento da gestação vem sendo repercutida por anos nas bolhas trumpistas. Para tanto, utilizam como argumento a lei do estado de Nova York que permite o aborto após as 24 semanas de gravidez quando o feto não é viável assim como nos casos em que há riscos para a saúde física ou mental da gestante.
A realidade mostrada pelas estatísticas é muito diferente. Os abortos realizados no final da gravidez são bastante raros: mais de 90 por cento dos abortos aconteceram dentro das 13 semanas de gravidez, datada do início da última menstruação da mulher e menos de 1 por cento dos abortos aconteceram após 21 semanas de gestação.
Outra estratégia dos ultra-conservadores (e replicada aqui no Brasil) é associar o aborto ao assassinato. A afirmação falsa que os democratas apoiam o aborto “após o nascimento” se encaixa nessa narrativa. Primeiramente, a fala é desonesta pois isso não é aborto mas infanticídio, o que é considerado crime em todos os estados.
A fala de Trump, como tantas outras, tem origem em fake news que circularam pelas redes sociais. Já em 2022, a agência de notícias Reuters alertava que as “Postagens nas redes sociais afirmam falsamente que Nova York aprovou um projeto de lei permitindo ‘abortos’ 28 dias após o parto”.
O estado de Nova York não aprovou uma lei assim e foi no Texas, republicano e trumpista, que a mortalidade infantil disparou. O estado sulista aprovou, em 2021, uma lei que proíbe a interrupção da gravidez desde os primeiros batimentos cardíacos do feto, mesmo em caso de incesto, estupro e inviabilidade do feto. Um estudo publicado na última semana mostra que a proibição do aborto no Estado sulista levou a um aumento da mortalidade neonatal, ou seja, 28 dias após o parto.
Os dados mostram que, após a publicação da nova lei do aborto, a mortalidade infantil aumentou 12,9%, enquanto o aumento foi menor, de 1,8%, no restante do País. No Texas, as mortes aumentaram de 1985 para 2.240, ou 255 mortes adicionais em relação ao período anterior. Uma análise das mortes neonatais encontrou padrões semelhantes, com mortes neonatais significativamente maiores do que o esperado. Estatísticas que indicam a causa de morte mostraram que as mortes infantis decorrentes de anomalias congênitas em 2022 aumentaram 22,9% no Texas (aumento de 22,9%) enquanto diminuíram 3,1% nos demais estados americanos.
Há algumas décadas, fui a um show do Jô Soares no Teatro São Pedro, em Porto Alegre. Ironizando a demora da Justiça brasileira, o comediante disse que um pedido judicial de aborto só seria julgado após o nascimento do bebê e que a solução seria executar a criança. A plateia deu risada do absurdo da situação. Já uma fala semelhante no debate entre os candidatos ao posto de “homem poderoso do mundo” é uma tragédia.
Foto da Capa: Reprodução CNN
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