Raquel Hagen, em “A cidade para as pessoas” publicado no último DOC ZH (4 e 5/11), defende a posição dos escritórios de arquitetura da capital frente à reforma do Plano Diretor, na capital gaúcha. O artigo foi publicado às vésperas da publicação do especial “Os donos da cidade: a quem serve o planejamento urbano de Porto Alegre” pelo Sul21. As duas iniciativas estão relacionadas. Elas são expressão das forças em luta neste momento no campo urbanístico: de um lado, aqueles que defendem a exploração do solo urbano sem limites pelo capital, e de outro, aqueles que são defensores de uma cidade realmente habitável para seus cidadãos. O que propõe Hagen: a liberação da verticalização do centro da cidade com base na ideia de “cidade compacta”. André Sette, em “O ideal da cidade compacta ainda faz sentido?”(disponível aqui) já fez a crítica desta alternativa de planejamento urbano. Segundo ele, a cidade compacta elege um tipo de vida ideal e deixa pouco espaço para escolhas individuais, pois nem todos gostam de viver perto do barulho do centro. A palavra é um eufemismo que serve para encobrir a ideia perversa de contenção: no fundo, no fundo, é o retorno aos tempos da…Revolução Farroupilha(!): ao invés de propor aquela murada ou paliçada visível de madeira, propõe uma murada invisível do planejamento urbano no centro da capital: “defender políticas como esta significa defender preços maiores para a terra urbana”, afirma Satte. O autor cita como exemplo Seul, que adotou esta política e onde a população passou a se espremer em imóveis cada vez menores e mais caros e compara Houston e Portland, nos Estados Unidos, onde a primeira, sem políticas de contenção, conseguiu ocupar os vazios urbanos e o efeito foi oferecer casas duas vezes mais baratas no centro do que em Portland, que a adotou as mesmas políticas. Para Sette, a proposta é ideal, mas no contexto da desigualdade habitacional em que vivemos, é inviável.
O problema da política urbana é oferecer moradias acessíveis a muitos e não cara para poucos. Por isso, para Sette, a resposta é assegurar espaço para vias arteriais para a expansão da cidade. Hoje, o Plano Diretor é objeto de debates na Câmara Municipal. Curiosamente, exatamente quando o legislativo completa 250 anos, lembramos que o espírito que orientava o trabalho dos vereadores no século XIX era o mesmo defendido por Sette. Naquele tempo os vereadores garantiam que não surgissem habitações informais nos espaços destinados a futuras avenidas. Numa época que não existia planejamento urbano, havia bom senso político para a construção da cidade. Primeiro construir as ruas, depois as avenidas, depois espaços públicos como praças e depois instituições públicas para todos eram os objetivos dos vereadores. Passados pouco mais de cem anos, o que mudou foi a força do capital sobre o poder Executivo e Legislativo para garantir a predação da cidade. Não nos enganemos: a proposta de construção de um arranha-céu no centro da capital com 41 andares na Duque de Caxias é apenas o “boi de piranha”. Se passar, muitos outros mais virão, verticalização que cidades como Buenos Aires e Chicago, segundo Sette, recusaram nos seus centros, preferindo crescer ao longo de vias de transporte. A solução não é crescer para cima, mas para os lados, exatamente como os “homens bons” da câmara do século XIX desejavam. É esta ideia que deve orientar os políticos e administradores locais e não o contrário. Uma cidade compacta é o pior dos mundos possíveis, pois depende de grande regulação, da determinação do poder público da forma de ocupação. Hagen, sob a justificativa de criar uma “cidade para as pessoas”, propõe uma política de indução de ocupação artificial sem espaço para a experimentação e a expressão da vontade da maioria dos cidadãos. A evolução urbana importa: a cidade contida é uma antipolítica urbana.
Hagen afirma que a cidade compacta tem o mérito de beneficiar o cidadão por supostos benefícios subjetivos – idosos teriam mais facilidades, as fachadas seriam belas e ativas etc. Curiosamente, raramente escritórios de arquitetura contam com psicólogos e psicanalistas para a produção de seus projetos. Se tivessem, saberiam que as influências de seus prédios vão bem além da “bela fachada”. Uma vez acabados, os arranha céus do centro da cidade não são prédios passivos, eles afetarão de forma trágica seu entorno e a subjetividade dos que circulam pelo lugar porque tais prédios produzem repercussões fundamentais no bem-estar de todos os cidadãos. “Edifícios nos projetam tanto quanto nós a eles” diz Lucy Huskinson em “Arquitetura e Psiquê” (Ed. Perspectiva), porque tais obras afetam nosso self por suas características, oferecem uma experiência não apenas aos seus moradores, mas aos demais observadores, gerando impactos positivos ou negativos ao bem-estar dos cidadãos da cidade. Clarice Oliveira, professora do curso de Arquitetura da UFRGS está certa: é mais da mesma pressão do mercado financeirizado imobiliário, produto da ótica neoliberal de planejamento urbano, que é exatamente o seu contrário, não planejar a cidade: “mercado não planeja, mas faz conforme suas intenções”. Essas intenções nunca são publicas, finaliza.
Tal concepção se expressa na insensibilidade dos projetos das grandes incorporadoras com a criação da identidade social dos porto-alegrenses. Os moradores da capital têm expectativas com relação à forma como a cidade cresce e se desenvolve. A pressão de grupos econômicos levou já a fragmentação do Plano Diretor no caso do centro, negando exatamente a ideia de plano. Ao contrário do que diz Hagen, belas fachadas não bastam: elas falham em conciliar modernidade e história local e em conciliar expectativas dos cidadãos para o lugar em seus projetos, mas são um sucesso para produzir o lucro dos escritórios de arquitetura. O problema é que fazem isso ao mesmo tempo em que produzem um custo existencial para a população, não conseguem estabelecer um relacionamento com usuários e não usuários que com eles se deparam. Alterar regimes urbanísticos para facilitar a ampliação das alturas apenas transforma o atual Plano Diretor em uma espécie de frankeinstein. Nessa discussão, está ausente, por exemplo, a questão dos estacionamentos subterrâneos desses prédios cujo efeito na circulação do centro estão para serem avaliados e nem como se fará para que os mais pobres não paguem pelos privilégios dos mais ricos. Diz-se que o novo prédio da Duque irá conversar com a cidade, mas como um espigão ao lado do Museu Júlio de Castilhos fará isso?
O cidadão não vive a cidade num vácuo. Ele a vive cercado pelos prédios que desempenham um papel subjetivo em suas vidas. Huskinson fala em quatro aspectos essenciais pelos quais os prédios nos afetam. O primeiro é porque a mente humana e o projeto arquitetônico se afetam mutuamente: não só a mente se organiza à maneira do layout dos prédios, mas o sujeito é influenciado pelos aspectos do meio ambiente que inclui os arranha-céus; o segundo é que o próprio prédio é um evento dinâmico, nos convida a participar dele, provoca ou nega identificações. Se nos identificamos ao aspecto arquitetônico-histórico do centro, a criação de um espigão junto ao principal museu da cidade nos afeta, porque é capaz de nos provocar uma espécie de ansiedade espacial; o terceiro é que a arquitetura afeta como nos sentimos na cidade, é ela que nos faz sentir integrados e seguros ou separados e inseguros. Parcela dos arquitetos dos referidos escritórios não reconhecem, mas no movimento acelerado de destruição de prédios antigos e a construção de prédios novos não provoca segurança como defende a autora, ao contrário, nos provam que aquilo que considerávamos permanente e estável pode ser destruído. Tais prédios tem esse poder porque oferecem ao cidadão porto-alegrense uma experiência estética.
A neoarquitetura dos projetos desses escritórios para grandes corporações propõe mais do mesmo: não passam de conjuntos habitacionais para quantidades de populações pequenas e limitadas. Estes empreendimentos fazem desaparecer o bairro do tecido social com suas muralhas e sistemas de vigilância, encerram a vida dos seus moradores nos limites de suas ruas e no interior de seus prédios que isolam o acesso até de prestadores de serviços. São mais uma vez o fim das quadras e ruas espontâneas que caracterizaram o centro da cidade antiga de Porto Alegre substituídas por uma cidade de grandes prédios, arranha céus, de produção rápida, planificados e modulares. A China já exporta essa tecnologia de construção rápida, com grandes prédios feitos em semanas para o sonho dos incorporadores locais, mas ela mesma já parou de fazer isso. Por que será?
Esse novo padrão de construção tem consequências desastrosas para Porto Alegre porque é o programa construtivo do neoliberalismo: ele substitui a ideologia de essência racionalista por uma de essência esteticista e abandonam os projetos planificados (que já tinham seus problemas) e o substituem por algo pior, uma visão “babilônica” de cidade. Que virtudes elas agregam a cidade além da restrição econômica e alterações do modo de vida? Daí a luta destes empreendedores e representantes do capitalismo financeiro em alterar os zoneamentos e liberar as alturas para satisfazer apenas as necessidades do capital e não a do trabalho e da vida como nova regra da urbanização. Criando ilhas de luxo em regiões determinadas, alterando o modo de vida na cidade (qual o problema de uma sombra na Catedral?), nossos empreendedores eliminam toda a complexidade do tecido urbano. Pior, destroem sua história.
Os empreendedores fazem isso porque sabem que somos atraídos por elementos e características dos prédios que propõem, numa palavra, sabem da sedução dos edifícios. Contudo, continuam fazendo prédios pouco inspiradores e incapazes de produzir repercussões positivas no bem-estar dos cidadãos e junto ao seu entorno. São projetos sem história. O motivo é o uso dos critérios de função, eficiência, impacto visual e principalmente custo em seus projetos. Huskinson assinala a interação fundamental do self com edifícios expressa na palavra “World”, cujo radical em alemão antigo é “Wer, que significa “homem”: “Há frequentemente uma incompatibilidade entre os valores endossados pelo arquiteto e pelo urbanista e as necessidades existenciais da pessoa que utiliza seu projeto”, finaliza.
Precisamos de um plano diretor do cidadão e não do capital. Ele harmonizará o trabalho e a casa, as ruas e as praças, a calma e o barulho. A cidade é lugar de agregação e não divisão. Arranha-céus dividem os cidadãos em vez de os conectar. Em nome da rentabilidade, seus executores deixam de lado tudo o que poderia tornar seus prédios evocativos: a capacidade de incentivar a perambulação ao seu redor e no lugar, a psicogeografia como base a partir do qual pudessem construir seus projetos visando o bem dos cidadãos. A falta de preocupação com as necessidades existenciais dos cidadãos é evidente – não deixa de ser sintomático que nesses empreendimentos, o tamanho dos imóveis esteja na inversão direta de seus preços. “Uma arquitetura mais apropriada é aquela que dá orientação, mas não prescreve como a pessoa deve se dirigir em relação a ela”, assinala Huskinson.
Nossos principais problemas (e a recente enchente da cidade só fez reforçar isso) estão diretamente ligados às soluções arquitetônicas que encontramos: a desigualdade, a pobreza, o racismo, o ódio das ruas não são solucionados pela arquitetura dos prédios, mas são de certa forma, suas zonas de amarração. Por isso, não se pode dissociar tais empreendimentos da ecologia urbana da capital, no sentido de que a cidade é um organismo inteiro e vivo. Por isso, a sua construção precisa que vá além de seu design, de suas paredes, do desejo de lucro que almejam. A reforma do Plano Diretor deve ser democrática, e não estar a serviço do capital. Os políticos atuais devem se justos: uma reforma de tal magnitude ou serve para o benefício do comum, ou é apenas mais uma forma de privatização na cidade.
Jorge Barcellos – Historiador, Doutor em Educação, autor de “O êxtase neoliberal” (Clube dos Autores)