James “Jimmy” McGill, Saul Goodman e Gene Takavic. São as três identidades assumidas por um dos mais fascinantes e complexos personagens da história da televisão americana – da dramaturgia audiovisual contemporânea talvez fosse uma definição mais justa, mas vamos nos ater ao suporte que consagrou o figuraça.
Nos despedimos dele neste 15 de agosto, com o final da sexta e última temporada da série Better Call Saul, disponível no catálogo da Netflix. Não vou aqui comentar os movimentos derradeiros da trama, o padrão da excelência narrativa, o esmero técnico e a construção dramatúrgica da galeria de ricos personagens que foi mantida em nível elevadíssimo do início ao fim. Isso era esperado numa série derivada da muito premiada e badalada Breaking Bad (2008-2013).
O grande trunfo da produção está no processo que revelou o advogado picareta e falastrão Saul Goodman, um divertido coadjuvante de Breaking Bad, como um protagonista carregado de densidade, humor e contornos trágicos à frente de seu próprio show.
Better Call Saul foi para o topo da lista do referencial site IMDb como melhor spin-off (como são chamadas atrações nascidas de outras) de todos os tempos e figura também no top ten de outros rankings relevantes. É um reconhecimento por ter conseguido algo raro neste modelo de série: descolar-se da matriz apresentando um universo próprio, mas sem perder a conexão essencial para o espelhamento funcionar. E como funciona bem, graças ao controle de seu criador, Vince Gilligan, e, sobretudo, ao excepcional trabalho do ator Bob Odenkirk.
A trama de Better Call Saul começa cronologicamente seis anos antes de Breaking Bad e se estende até os acontecimentos finais desta. Acompanhamos a transformação de Jimmy McGill em Saul Goodman, advogados que cruzam a linha entre a lei e o crime, e a tentativa dele para recomeçar a vida na clandestinidade, como o gerente de lanchonete Gene Takavic, este apresentado em flashes ao longo da série.
O brilho de Better Call Saul – e um aspecto que a faz ombrear com Breaking Bad no conjunto da obra – é Jimmy/Saul/Gene cumprirem uma jornada ainda mais épica e tortuosa do que a de Walter White. O professor de química levava uma vida tranquila e meio cinzenta na cidade de Albuquerque, no Novo México, até se ver seduzido pelo crime por uma causa extrema: diagnosticado com câncer terminal, White descobre que pode ficar milionário produzindo metanfetamina para um poderoso cartel de drogas mexicano. Vale correr risco de morte antes da hora ou de prisão, avalia, para deixar sua família segura financeiramente.
Jimmy, por sua vez, não parece sofrer muito com dilemas éticos e morais de suas escolhas. Não é o herói corrompido pelas circunstâncias adversas. E esta é sua complexidade. Ele tem diferentes oportunidades de se aprumar e viver bem como advogado, graças a boa lábia, a criatividade e o talento nato para desenrolar enroscos legais que o fazem se projetar no circuito jurídico, apesar de sua formação aos trancos em uma universidade de quinta categoria.
Mas Jimmy é movido por um impulso para cruzar a linha. Era um golpista que vivia de enganar desavisados gananciosos. Viveria assim, não fosse tirado da prisão pelo irmão mais velho, um próspero advogado com hábitos excêntricos e pinta de maluco, sob a condição de trabalhar como entregador de correspondência em seu escritório. Decide então seguir os passos do irmão.
Traumas de juventude e a admiração retribuída com desprezo e humilhação que marca seu relacionamento com o irmão são catalisadores da reviravolta. O orgulhoso Jimmy não quer mais ser um advogado promissor à frente de causas justas. Sabe que se daria bem em qualquer ofício honesto a que se dedicasse. Mas rejeita o mundo certinho que sempre o olhou enviesado. Prefere se reinventar como o histriônico Saul e estreitar laços com o submundo do tráfico de drogas que se disfarça sob atividades legais de fachada.
Entre perdas e danos, é um caminho sem volta tomado de forma consciente. Sem maiores arrependimentos, sem as lamúrias tão caras às tramas redentoras e edificantes do herói redimido. Foi como tinha de ser. E quem embarcar com Jimmy/Saul/Gene na jornada terá uma experiência que, embora o gosto por vezes amargo, é por demais saborosa e gratificante.