Eu fui criança e adolescente nos anos 1970/80 e me lembro perfeitamente da presença de orixás na MPB. E não era só por causa dos baianos, novos e antigos, de Dorival Caymmi aos Doces Bárbaros. Meio que num universo paralelo, três artistas marcaram minhas referências aos orixás: a dupla um inusitado príncipe chamado Ronnie Von.
Confesso que pouco ou nada entendia das letras que eles traziam, pois, as religiões de matriz africana não eram padrão em minha casa. Seguíamos a tradição dos rituais católicos, à exceção do meu pai, que se declarava ateu e que sequer era batizado até o dia em que resolveu casar-se com minha mãe e, por exigências protocolares religiosas, se viu obrigado ao batismo. Casamento na igreja, festa, a chegada de filhos e os ritos da igreja católica ficaram restritos a isso: batizado dos filhos, casamento de amigos, primeira comunhão e missa do galo. Meu pai frequentava terreiros, mas isso também se limitava a nos levar para “tomar passe” de vez em quando. A única lembrança que tenho desses rituais é a de uma sala com muita gente negra, pessoas de turbante e bata, um cheiro de ervas e uma fumaça… e era isso. Não se falava sobre o assunto em casa nem na escola. Umbanda era um culto meio escondido.
Em um momento de muito preconceito, desrespeito e perseguição aos adeptos das religiões de matriz africana, dois artistas geniais tomaram a frente em defesa da música de religião afro-brasileira. Em pleno reinado da bossa nova e da jovem guarda, os geniais Baden Powell e Vinicius de Moraes lançaram o disco “Os afro-sambas”. As oito canções trazem os orixás como protagonistas, em uma singular musicalidade, que traz uma mistura de instrumentos do candomblé e da umbanda (como atabaques e afoxés) com timbres mais comuns à música brasileira (agogôs, saxofones e pandeiros).
Assim o samba, que a essa altura se embranquecia com a bossa nova da vida pequeno burguesa do Rio de Janeiro, vai beber na fonte negra da Bahia onde já reinava Dorival Caymmi. Com Vinicius e Baden, o samba se veste de África e ruma para um universo mais social da cultura negra.
Mesmo que a classe média e a classe alta branca e bem-sucedida frequentassem os terreiros, a religião de origem africana era considerada coisa de pobre e de negro. E ser pobre e negro não era nada bom. Estávamos sob a égide do governo militar que via perigo à moral e os bons costumes em quase tudo. E neste ambiente, surge um verdadeiro hino da umbanda (e do candomblé) que se disseminou nos palcos, lares, TVs e rádios do território nacional.
De uma beleza clássica, branca, Ronnie Von era conhecido como o príncipe dinamarquês da música brasileira. Cantor de baladinhas e músicas água com açúcar, o bom moço surpreendeu com um sucesso totalmente ligado à religião afro-brasileira.
O curioso dessa música é o fato de seu compositor ser um argentino que pouco ou nada sabia sobre religiões afro-brasileiras. Sergio Dizner, que adotou o nome de Tony Osanah, (sobrenome dado por Elis Regina), teve um encontro inesperado com um pai de santo, no centro de São Paulo, em fevereiro de 1972. O sujeito o levou a um terreiro e disse que Tony não poderia imaginar como seria sua vida dali em diante. Ao voltar para casa, o músico compôs Cavaleiro de Aruanda em quatro minutos.
“Quem é o Cavaleiro que vem lá de Aruanda?
É Oxóssi em seu cavalo com seu chapéu de banda”
E todo mundo cantava. Brancos e negros, adultos, jovens e crianças, religiosos, iniciados e leigos. Mistério e fenômeno que só “quem é ateu e viu milagres como eu” consegue aceitar.