Se você não estava fora do Brasil na semana passada, talvez tenha tomado conhecimento – e até mesmo algumas pessoas que estavam fora ainda assim poderiam ter ficado sabendo – da acirrada polêmica que se seguiu à publicação, na capa do jornal Folha de S. Paulo do dia 19 de janeiro, uma quinta-feira, há exatamente uma semana, de uma imagem em que o presidente Lula aparecia de cabeça baixa, mas com uma expressão sorridente ajeitando a gravata por trás de uma vidraça maculada pelo rastro circular estriado deixado por algum objeto contundente ou perfurante. A imagem provocou uma série de leituras e interpretações de sua simbologia visual tanto objetiva quanto subjetiva, com os atores de um mesmo campo político discordando sobre a propriedade de sua publicação ou até sobre que mensagem ela passava ou que sensação ela despertava de imediato, uma vez que os dois pontos de interesse visual na imagem se mesclam para dar a impressão de que Lula está por trás de um vidro que acabou de levar um tiro, e que o projétil teria sido disparado na altura do peito do atual presidente.
A imagem é da fotógrafa Gabriela Biló, autora de uma das imagens símbolo da era bolsonarista (aquela em que Bolsonaro parece fuzilar com seu “sinal de arminha” seu então Ministro da Justiça prestes a cair em desgraça com o chefe, Sergio Moro) e que havia se notabilizado dias antes por circular inadvertida e registrando imagens dentre os terroristas que invadiram o centro do poder em Brasília. Ela própria defende seu trabalho específico na foto de Lula argumentando que a imagem representa a resistência do presidente, e por extensão, do povo e da democracia brasileiros, à tentativa de golpe, uma leitura que está longe de ser unânime mesmo no campo da esquerda.
A prática jornalística
Só que essa é apenas uma parte da discussão, a de espectro mais amplo, admito, mas a que menos me interessou, tanto na semana passada quanto agora. Para mim, o foco do debate é a etapa inicial, aquela que, pelo que vi, provocou mais reações exacerbadas e opiniões contundentes entre jornalistas do que entre o público em geral: como a página do jornal já reconhecia, a imagem de Lula e do vidro não era um “clique” obtido pelo olhar oportuno e pela paciência da jornalista, mas resultado de uma técnica de “múltipla exposição”, ou seja: eram duas imagens que, por meio de um truque realizado com a câmera, foram gravadas sobrepostas como se se tratassem de uma única cena.
Como o jornalismo é a minha profissão há bem três décadas, também eu, em um primeiro momento, tive muitas opiniões bastante assertivas sobre o caso todo – e eu vou meio que abri-las agora porque talvez elas não sejam as mesmas até o fim deste texto (ou porque a função deste texto é justamente multiplicar o número de opiniões sobre o caso, não fornecer apenas a minha). Achei a foto visualmente interessante. Sei que a técnica já existe desde os primórdios da fotografia.
Acho que usá-la para misturar duas imagens tiradas em dois momentos diversos e ainda assim defini-la como fotojornalismo é um passo perigoso porque abre o caminho para que qualquer outra montagem também seja – muito do pesadelo moral e conceitual que vivemos no quatro anos de bolsonarismo foi o quanto eles se aproveitaram de discussões legítimas de forma e conteúdo que puxavam alguns conceitos até o limite para ultrapassar esse limite e explodir além de qualquer remédio qualquer consenso. Hoje, a foto na Folha provoca discussões legítimas sobre os limites de uma linguagem, amanhã pode ser usada para justificar uma montagem de Bolsonaro em um comício lotado no qual ele sequer esteve presente, por exemplo. Mas isso sou eu, é a minha opinião, e uma das coisas que eu sei que também disse durante essas discussões que tive com amigos e contatos de rede é que “minha opinião não vale muito mesmo”. O tom da frase é humorístico, mas carrega uma verdade que sou o primeiro a reconhecer: eu trabalho há mais de 30 anos como jornalista, mas esse tempo todo foi passado, na sua maioria, como jornalista de texto, e não de foto, portanto eu não sou qualificado o bastante para discutir esse ponto em particular. Foi aí que surgiu a ideia de ouvir quem era. Fotógrafos.
Três perguntas
Uma das coisas interessantes de ter sido jornalista de texto por tanto tempo em veículo impresso – e na época em que trabalhei, especificamente – é que pude ser um repórter que passou boa parte da carreira trabalhando em equipe, em campo, com fotógrafos de talento. Assim, tenho a felicidade de conhecer muitos fotógrafos, que conhecem outros fotógrafos, etc., então enviei a alguns desses, aos que eu conhecia e a outros que me foram recomendados, três perguntas simples:
1 – O que você, pessoalmente, achou da foto?
2 – Uma das discussões levantadas nesse caso, e a que me interessa, a bem da verdade, foi sobre se essa imagem, composta de duas exposições de objetos e momentos diferentes mesclados na mesma imagem poderia ainda ser chamada de “fotojornalismo”. Qual sua opinião?
3 – Outra discussão aberta pela imagem foi entre o uso de uma foto jornalística como um “comentário” editorial (no caso dos que a defenderam) ou se o jornalismo fotográfico se define pelo registro do que de fato o fotógrafo viu em todo ou parte num único e determinado momento. Onde você se situa?
Sou um veterano de quase 50 anos que saiu das redações há três, então tentei não me restringir aos caras da minha época, mas falei também com jovens talentos que estão no jornalismo diário ou no ramo fotográfico hoje, trazendo uma nova perspectiva geracional, e acho que o resultado ilumina algumas questões que não haviam me ocorrido quando eu simplesmente tive uma opinião reativa à foto. A principal delas é que a imagem, produzida em novo contexto de produção informado por novas tecnologias e pela saturação da imagem como linguagem comunicativa, parece ser encarada de modo diverso de acordo com a geração de quem a olha. Os mais jovens dentre aqueles que ouvi tendem a não apenas aceitar essa fotografia como até mesmo louvá-la – no mínimo, ver nela e em sua realização pontos de debate fundamentais.
Não é fotojornalismo
Alguns dos meus colegas um pouco mais velhos do que eu ou da mesma geração têm uma opinião que parece casar com a minha impressão inicial – embora eu não tenha o grau de expertise deles, os meus colegas fotógrafos.
O fotojornalista Júlio Cordeiro, por exemplo, 57 anos, com uma longa e premiada carreira de 35 anos no meio, além de uma experiência pregressa como professor, se mostra até mesmo incerto de se é possível chamar a imagem captada por Gabriela de “foto”, por exemplo.
“Pensando na imagem, eu me coloco até mesmo a questão de se é possível defini-la como uma foto. Se a gente for puxar os conceitos da fotografia desde o seu início até as recentes evoluções da tecnologia, poderíamos chamar de “uma foto”, mas eu, particularmente, pelo fato de ser resultado de uma manipulação técnica, vejo como uma ilustração. Se a mesma imagem fosse feita no processo de uma única exposição, eu acharia uma bela foto. Mas dessa maneira como foi feita, penso que não é uma fotografia, é uma ilustração.”
É um ponto de vista compartilhado por outros fotógrafos com trajetória longa na profissão ouvidos por este seu colunista. Sílvio Ávila, por exemplo, 57 anos, com uma trajetória que inclui 15 anos em veículos da RBS e que hoje atua como stringer para a agência internacional AFP (Agence France-Presse), diz algo parecido:
“Em um primeiro momento, quando eu vi a foto, achei uma imagem espetacular. Quando li a legenda e vi que não era uma fotografia jornalística, aí achei horrível, porque a proposta do fotojornalismo não é essa. Resumindo: não, eu não gostei da foto, que não é foto, é uma ilustração”
Qualificar a imagem como ilustração mais do que como fotojornalismo (ou seja, não negando à imagem seu espaço num jornal, mas questionando a forma como foi apresentada e até mesmo achando que duas coisas diferentes foram confundidas) foi também o que fez a fotógrafa Adriana Franciosi, alguém cuja carreira multipremiada começou em 1986:
“Penso que duas imagens sobrepostas em momentos diferentes não podem ser consideradas fotojornalismo, mas sim ilustração. Uma coisa é você fazer um ensaio fotográfico, em que diversas fotos tentam formar uma unidade de ideias. Outra coisa é tentar juntar duas fotos para formar uma terceira, no caso da dupla exposição, com a intenção de “dizer algo”. E é justamente aí que mora o perigo, pois é manipulação” diz ela, que ainda ressalva que acha interessante o uso desse tipo de técnica para imagens produzidas em pautas menos ligadas ao chamado “hard news”, como as de cultura. Na cobertura de política, economia ou de eventos traumáticos, pensa ela, esse tipo de manipulação viola o contrato tácito entre fotógrafo e leitor.
Não muito diverso é o pensamento de Jefferson Bottega, 50 anos. 36 anos de profissão Fotojornalista no Grupo RBS desde 1996, que diz:
“O Fotojornalismo é a atividade ligada à matéria. Historicamente, sua função é reportar de modo visual os fatos para o leitor/internauta. É uma forma de levar o leitor para dentro do evento noticioso. No caso em questão, a cena não existiu, por mais que o Lula estivesse a alguns metros do vidro estilhaçado, aquela cena foi criada, por si só já se perde a credibilidade. Aquela cena foi criada, não é real.”
É fotojornalismo
De modo geral, percebi, ao fazer essa compilação de opiniões, uma demarcação etária evidente. Com poucas exceções, os fotógrafos abaixo dos 40 anos pareceram receber a imagem de uma forma mais positiva e até mesmo entusiasmada. Bruno Alencastro, 38, hoje editor na Sift Creative, com uma carreira iniciada no início dos anos 2010, com passagem pelos principais jornais do RS e também com uma experiência prévia de professor, vê o debate como deslocado, e até mesmo antiquado, uma vez que já havia surgido no plano internacional quando, em 2011, o fotógrafo alemão Michael Wolf recebeu Menção Honrosa no tradicional concurso World Press Photo por um ensaio inusitado feito a partir de capturas de tela no Google Street View.
“Vejo com espanto a tentativa de teóricos, pesquisadores, professores e profissionais da imagem que desde a publicação da fotografia em questão passaram a discorrer sobre a sua pretensa (e única!) visão sobre o que é o fotojornalismo. Em especial, limitando a discussão ao argumento raso de que a técnica de múltipla exposição “infringe as normas e a ética de fotojornalismo”. O que falar, então, das milhares de imagens produzidas a partir dessa mesma técnica em todas as edições das Olimpíadas e difundidas por jornais ao redor do mundo? Ou então de outras técnicas e desenvolvidas diariamente no exercício da profissão que manipulam essa pretensa ética do fotojornalismo, como panning, usos de luzes artificiais, lentes com óticas angulares para esvaziar e teles para simular multidões, reflexos que dissimulam nossa percepção, etc.?”
É uma discussão que traz para o centro do fotojornalismo, tradicionalmente definido como uma forma de testemunho em imagens, um debate que já existe desde as vanguardas artísticas do início do século XX: a ideia de que uma combinação de imagens prontas dentro de um novo contexto ganha outro significado mais amplo, uma discussão que vem sendo recorrente ao se pensar o estatuto da imagem neste século 21. Teóricos como François Soulages e André Rouilles já declararam, implodindo algumas noções estabelecidas, que a própria existência da fotografia, seja lá qual foi sua técnica ou mecânica de captação, faz de um instante um momento/evento que não existiria daquele modo se não tivesse sido captado – e, portanto, a ideia de que a foto representa “a realidade” seria falaciosa.
Outra jovem profissional, Alina Souza, 34 anos, repórter fotográfica do Correio do Povo e responsável pela coluna FotoCorreio, no mesmo jornal, também compartilha desse ponto de vista, trazendo para a discussão também outra questão inescapável atual no barateamento do estatuto da imagem no mundo contemporâneo: seu esvaziamento pela multiplicidade de câmeras por toda parte, o que pediria, de acordo com ela, uma postura diversa do modo “registro”:
“Tecnicamente o fotojornalismo (antigo) estava baseado nesta visão mais de ‘registro’. Mas o tempo passou, as tecnologias avançaram e hoje eu creio que o fotojornalista diferenciado é justamente a pessoa que pensa a imagem — inclusive de uma forma artística — dentro da rede de acontecimentos contemporâneos. Não basta mais ter o domínio da câmera, fazer o “registro” — hoje todo mundo é capaz de fazer isso com a facilidade dos celulares em modo automático. Se o fotojornalista não conseguir ser inteligente e analítico, ele será só mais um na multidão. Creio que é uma quebra de paradigmas. Gabriela Biló pode ser uma precursora”.
Outro defensor da foto, André Ávila, 37 anos, repórter fotográfico com mais de uma década de carreira e atualmente em Zero Hora, também louva a foto como jornalismo e problema a ideia de que a fotografia jornalística é o que o seu autor “viu”:
“Toda foto é um comentário editorial do fotógrafo. Fotografia é interpretação de mundo. Vejo que a questão da tecnicidade não deveria ser antagônica à intenção do fotógrafo – claro, quando em casos a imagem precisa ser explicada na sua legenda, deve ser explicada. E ela foi. Uma fotografia de longa exposição é mais a técnica do que o que o fotógrafo “vê”, por exemplo. Nosso olho nu não enxerga dessa forma. Mas sabemos recorrer a esta técnica para informar aquilo que estamos mostrando”.
Uma síntese
As exceções que citei foram as resposta a mim enviadas pelos fotógrafos Marcelo Carôllo e Mateus Bruxel. Ambos da “ala jovem” da minha lista, eles não chegam a execrar a foto ou a fotógrafa (embora Carôllo tenha achado a imagem esteticamente pobre), mas questionam o modo como foi usada editorialmente.
“Acho que caberia, sim, a defesa da foto como comentário editorial, “coluna de opinião” da fotojornalista. Mas aí a embalagem teria que ser outra, né? As pessoas já têm dificuldade de compreender o que é reportagem e o que é opinião dentro de um portal de notícias. Aquela foto do Lula na capa de um impresso, sem grandes reflexões anexas, com uma legenda pequena que apenas explica a técnica aplicada (e quantos leitores da folha será que leem “múltipla exposição” e entendem do que se trata?)… É uma soma de decisões estranhas que, para mim, só levam a criar confusão”, diz Carôllo.
“A imagem sugere uma manchete visual impactante, mas se revela sensacionalista. Diante do contexto da publicação e da recente ameaça golpista à democracia, me parece inoportuna. Entendo, entretanto, que isso não pode servir para desqualificar a trajetória profissional da fotógrafa e muito menos justificar ataques à autora da imagem”, define Bruxel, para quem também o debate poderia ter outra conformação e que também se refere ao ponto de vista da “representação” como ultrapassado:
“Não me incomoda o uso de múltipla exposição como possibilidade narrativa. E me parece antiquado ainda discutir a fotografia como representação do real, principalmente diante de imagens como as possibilitadas por IA, por exemplo. Acredito que é necessário atentar para questões éticas e o respeito a uma verdade factual dos acontecimentos no fotojornalismo, num cenário de consumo quase ingênuo de imagens e limitada alfabetização visual.”
E é Bruxel também que resume um sentimento que passou a me acompanhar após ter feito estas consultas e compilado as respostas. Não acho que mudei substancialmente de ideia em achar a foto mais ilustração do que jornalismo, mas vejo que há um número significativo de novos profissionais dispostos a pensar no assunto por outro ângulo, e eu não serei aqui o velho ressentido que acha que “essa gurizada não sabe nada”. Talvez saibam, e eu estou por fora. Mas, como definiu Bruxel:
“Ainda que não se trate de uma foto jornalística, pela dúvida sobre o caráter informativo ou uso editorial descontextualizado, acho importante o debate que ela suscitou.”
Afinal, voltarmos a discutir práticas e éticas do jornalismo em vez de nos horrorizarmos semanalmente com as práticas e éticas do presidente da república, como no governo anterior, me parece sim um ganho substancial.
Um último adendo: infelizmente, para que este texto não tivesse 20 mil telas e não me tomasse seis meses, precisei editar as respostas que os fotojornalistas consultados tão generosamente me enviaram. Mas registrei o conjunto de respostas na íntegra neste arquivo word que vocês podem abrir neste link do google drive.