Venho de uma família de professores. Embora a minha vida tenha seguido outros caminhos e eu mesmo nunca tenha me inclinado para essa profissão, foi essa a circunstância que definiu muito do que sou e me tornei, mais até, ouso arriscar, do que meus anos como estudante e praticante do jornalismo como profissão, essa foi a verdadeira circunstância formativa da minha vida. Todos os cinco irmãos de meu pai exerceram em algum momento ou ainda exercem o magistério, então a visão de livros, papeis e professores virando noites preparando aulas ou rodando provas em mimeógrafos esteve presente desde muito cedo na minha vida, e até hoje ressoa em mim com mais força do que eu mesmo esperaria.
Assim como muitos escolhem pontuar momentos de seu passado com seja lá que música chata estivessem ouvindo na época, nossos primeiros anos podem ser sempre recuperados pelo marco temporal de um professor específico. Um dos meus primeiros encantamentos com a beleza foi a professora do pré-primário. Era uma jovem adulta, mas não sei direito que idade tinha. Cabelos pretos, lábios escuros, sorriso bonito. Dizem que alunos nessa idade se apaixonam pelas professoras, mas na verdade eu me apaixonei por uma colega de pré, então desse clichê me escapei, mas me lembro da voz calma e da infinita paciência (da professora, não da colega), e de como fazia da sala de aula um lugar em que eu queria muito estar.
À medida que os anos passam, surgem outros. Com alguns, aprendi o currículo, com outros, muito do mundo. E com alguns, ambos. Houve a gentil professora de Química no 2º ano do Segundo Grau (Ensino Médio é o teu nariz, eu tenho mais de 40) que falhou miseravelmente em me ensinar química, mas era uma boa pessoa, enquanto no ano seguinte um determinado professor até teve sucesso em me inculcar o pouco que sei do assunto, mas que era figura instável dada a explosões que hoje renderiam cancelamento. Depois, anos na faculdade, graduação e pós, alguns cursos avulsos, nos quais a relação vai se tornando mais próxima a ponto de poucos deles precisarem de sobrenome. Ali a relação se torna mais complexa, é a relação entre um profissional e seus futuros colegas, além de mestre e aluno.
Exemplos e currículos
Claro, nem todo mundo nas listas de professores que cruzam nosso caminho despertam esse tipo de carinho e respeito, há também os que passam e você esquece, esses são os que provavelmente têm uma visão de mundo e ensino bastante diversa da sua, talvez. Ou estavam de algum modo eles próprios cansados ou abatidos pela dificuldade inerente da profissão quando foi tua vez de cruzar o caminho deles. Há aqueles ainda que você lembra não porque ensinaram o currículo, mas outra coisa que viria a se provar útil: reconhecer hipocrisia, servilismo, preconceito, segundas intenções.
Ainda assim, é impossível minimizar o papel de um professor na vida de qualquer pessoa em qualquer etapa da escolaridade e em qualquer tipo de escola. Dos cursinhos às aulas particulares e agora nesse meio um tanto hostil dos vídeos de YouTube e TikTok e assemelhados. Das particulares em que o grande drama é o pai pouco familiarizado com a própria escola querendo entender por que seu filhinho está indo mal na aula se é tão inteligente aos estabelecimentos públicos em que a falta de material e o ambiente precário para o ensino são amplificados por políticas oficiais voltadas a números e estatísticas de evasão e repetência mais do que a uma abordagem pedagógica de fato.
Talvez também por isso sempre que chega outubro e começam a pulular homenagens meio cínicas de umas figuras meio grotescas ao Dia do Professor eu, por meu turno, sempre me pego desejando que os melhores professores de que tenho lembrança, sejam ou não da minha família, tenham a sorte de conseguir largar disso e ir fazer outra coisa.
Subalterno
Não estou fazendo piada nem sendo cínico. Eu realmente considero doloroso o caráter tristemente subalterno que a sociedade brasileira reserva para a função de professor, em tempos de teto gastos (construído para cair na cabeça da educação), de perseguições à escola como formadora de consciência, de tentativa de imposição na marra de uma “escola sem partido” que na verdade é a escola partidária do poder do status quo naturalizado.
Aliás, falar de “escola sem partido” me remete a muita coisa, mas acho que vou pinçar só como exemplo um trecho do magistral HHhH, do escritor francês Laurent Binet, sobre (entre milhões de outras coisas) o carrasco nazista Reinhardt Heydrich e o atentado que o matou enquanto administrava a Boêmia como um protetorado nazista. A certa altura, Binet, que faz de seu livro uma narrativa na qual o ficcional é narrado como mais um elemento de um livro que também documenta sua própria produção, reproduz um discurso feito em 1942 por Heydrich, um dos mais perversos personagens da quadrilha de sádicos que compunha o alto escalão do partido nazista, no qual ele anuncia sem meias palavras que a melhor forma de os nazistas ganharem os corações e mentes na Boêmia ocupada é tocar o horror para cima dos professores (àquela altura, as escolas do território ocupado estavam fechadas havia três anos). Os termos usados poderiam ser qualificados como prescientes ou atuais não fossem simplesmente inevitáveis, diante do caráter cíclico das aventuras autoritárias:
“É essencial punir os professores tchecos, pois o corpo docente é um viveiro para a oposição. É preciso destruí-lo e fechar os colégios tchecos. Naturalmente, a juventude tcheca deverá então ser levara a um lugar onde poderá ser educada fora da escola e arrancada dessa atmosfera subversiva. Não vejo melhor lugar para isso que um campo de esporte. Com a educação física e o esporte, asseguraremos ao mesmo tempo um desenvolvimento e uma reeducação”
Analisando todo o programa contido nessa frase, Binet chega a uma conclusão provocativa sobre a “honorável corporação” da qual ele também se declara membro:
“A honra da educação nacional é de fato defendida pelos professores, não importa o que pensem deles, têm vocação de ser elementos subversivos e merecem ser homenageados por isso”.
Ataques
Talvez isso explique os reiterados ataques que vemos nos últimos 10 anos de toda uma ala que enxerga nos professores os atuais inimigos do Brasil. Colunistas que encontraram um público na ala mais raivosa do público leitor conservador da grande imprensa, políticos oportunistas tentando pegar carona no espantalho da “doutrinação ideológica”, empresas que pautam sua produção de conteúdo numa versão alternativa (por vezes delirante) de fatos históricos como ferramenta na construção de um Brasil paralelo. Com tanta gente no cangote dos professores nos últimos anos, não me surpreende que estejamos afundados em meio a um “apagão de professores”, para usar uma expressão cunhada pelo ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro numa época em que as coisas ainda não estavam nem remotamente tão feias como agora.
A consequência é uma narrativa que talvez vocês aí já tenham ouvido ou testemunhado: os professores estão fugindo, estão desistindo, estão dando o pinote, porque é cansativo no nível de masoquismo lidar com todos os gigantes problemas de um país no qual política pública para a educação é melhoras “as métricas” sem investimento, preparação, sem salário em dia.
A fuga
Tem gente na família. Tem dois ou três casos recentes de que ouvi falar: professor que resolveu arriscar virar corretor, professor que largou fora e montou um armazém. E dia desses era o Uber que eu chamei, um senhor impecavelmente gentil, com uma voz potente de barítono, e que, entre um causo e outro, contou como simplesmente desistiu do magistério e foi transportar passageiro porque não via mais sentido no embate com a estrutura, com os pais complacentes de estudantes mimados e até com algumas invencionices recentes que formam um novo tipo de pesadelo, como o pai espertão para quem nazismo é de esquerda, a escravidão não é responsabilidade dos portugueses. Como ensinar alguém assim?
Professor de filosofia ele próprio, o espanhol de origem basca Fernando Savater esteve no Brasil há uns anos e, numa entrevista, lascou o seguinte comentário:
“Os professores são o fundamento da democracia, e eu diria que também da civilização. Sem eles, há apenas a barbárie da elite tecnológica e a arrogância brutal dos plutocratas latifundiários ou financeiros. É uma obrigação racional de todos tornar a carreira de professor atraente, dotá-la de uma boa preparação e de uma remuneração adequada”
A barbárie da elite tecnológica e a arrogância brutal dos plutocratas latifundiários ou financeiros se tornaram fortes como nunca no Brasil recente, e não há como ser coincidência.
E por que diabos este texto está sendo publicado agora e não lá em outubro, no dia do Professor, você deve estar se perguntando. Porque pra mim é exatamente esse um dos pontos. Valorizar o professor com símbolo sacerdotal ou manifestar apoio “à Educação” como solução para um país é a coisa mais fácil que existe, tanto que se torna recorrente a cada Dia do Professor. Mas na construção cotidiana de uma sociedade, cada vez parecem ser mais silenciadas as vozes dos professores eles próprios, como se viu no debate recente do Novo Ensino Médio, em que sindicalistas e empresários da educação pareciam monopolizar o debate – além do Luciano Huck, claro, o Caetano Veloso do empreendedorismo, sempre pronto a dar alguma opinião em qualquer coisa.
Alguém aí vai talvez objetar que este é um texto por demais impressionista para um assunto tão sério, mas esta é uma crônica, mas se você quer alguns dados, é só consultar recente pesquisa da ONG Conectando Saberes segundo a qual 70% dos professores apontam como frequente a necessidade de lecionar disciplinas fora de sua área, 77% acreditam que os salários e planos de carreira levam os educadores a desistir do trabalho e 75% afirmam que questões psicológicas também levam à desistência. E isso nos níveis iniciais, onde a carga é mais pesada, mas foi bem documentada também nos últimos quatro anos a evasão de docentes nas universidades. A questão deste texto não são os números, é o quadro geral.
Para muitos, o Brasil é um país sem lógica.
Talvez ele esteja perto de se tornar algo ainda mais absurdo, um país sem professores.