Garoa é a palavra que usamos para designar a chuva fininha, miúda, tão comum em tempo outonal. Um brasileirismo que é usado especialmente em São Paulo, considerada a “terra da garoa”. A origem etimológica é discutível, mas é possível que venha do quíchua: garua (chuvisco).
Para os gaúchos, garoa também passa a ter um significado trágico, ainda pouco explicado, e que terminou parcialmente submerso pelas chuvas e consequente inundação, agora conhecida por Enchente de 2024.
O incêndio da Pousada Garoa deu-se na madrugada de 26 de abril de 2024, em Porto Alegre. Apenas alguns dias antes das chuvas torrenciais iniciadas naquele primeiro de maio. O local, uma das unidades da dita pousada, situado na Avenida Farrapos, próximo à Estação Rodoviária, abrigava – se é que se pode usar esse termo – pessoas em situação de vulnerabilidade social. Num convênio aparentemente não muito bem controlado pela Prefeitura.
O fogo teria começado por volta de 2h30 da manhã, tendo se alastrado rapidamente. Para escapar das chamas, algumas pessoas pularam das janelas do segundo e terceiro andar. Cerca de 40 pessoas estavam no prédio. A estrutura de madeira, material acumulado, ausência de sinalização e outros fatores responsáveis pela intensidade das chamas tornaram ainda mais difícil o trabalho dos bombeiros. Foram encontrados 10 corpos em cômodos da pensão, a 11ª vítima morreu no hospital, 15 pessoas restaram feridas.
O cuidado com os moradores de rua, pessoas assombradas pela miserabilidade socioeconômica, marginalidade e rejeição, sujeitas à violência, abuso de drogas e outros problemas de saúde, parece estar próximo de uma solução mágica a cada campanha eleitoral. Nem vale a pena rememorar de quantas, e quantas vezes, ouve-se tais promessas, em patéticas interpretações.
Na Inglaterra Vitoriana, a pobreza era entendida como um desvio moral, não consequente a desigualdades estruturais. Esse preconceito permeou um projeto e a sua aplicação operacional no formato de abrigos. Muitos foram administrados pelo Exército da Salvação, fundado em 1865, uma entidade que sempre se baseou num cristianismo prático, de prover necessidades básicas em sua missão de auxiliar os pobres.
O nome peculiar dado a um tipo desses abrigos, “Four Penny Coffin”, se devia às camas em formato de caixão, opção para quem conseguisse juntar quatro centavos em troca de uma noite de “sono”. Esses estabelecimentos, em Londres e outras cidades da Grã-Bretanha, devem ser compreendidos dentro de um contexto. A Revolução Industrial transformou muitas localidades em movimentados centros industriais, com graves problemas sociais. A solução foi moldada pela autossuficiência e superioridade moral das classes mais abastadas.
Esses caixões de madeira, onde os moradores de rua podiam se deitar durante a noite, apesar de sua aparência tétrica, tornaram-se uma opção popular. A possibilidade de dormir na posição horizontal, algo como uma bênção em comparação a outras alternativas.
Para aqueles que não conseguiam pagar os quatro centavos, tendo um valor menor – um ou dois centavos – dava-se o direito a uma banqueta para passar a noite, sentado. Ou uma corda para se agarrar. Essa e outras práticas, que mais parecem ficção literária, foram relatadas por escritores como George Orwell (1903-1950) e, antes dele, Charles Dickens (1812-1870).
Escritas em 1933, por Orwell, como uma espécie de crônicas de viagem, em “Down and Out in London and Paris” podemos ler: “Na Ressaca de Dois Vinténs, os hóspedes sentam-se em fila em um banco; há uma corda à frente, e eles se apoiam nela como se estivessem se debruçando sobre uma cerca. Um homem, jocosamente chamado de manobrista, corta a corda às cinco da manhã.” “No Caixão, por quatro pence a noite, você dorme numa caixa de madeira, coberta com uma lona. É frio, e o pior são os insetos, dos quais, estando preso numa caixa, você não consegue escapar.”
Em “Pickwick Papers”, publicado no século anterior, em 1836, Dickens apresenta-nos o seguinte diálogo: “- E, Sam, o que é essa corda de dois pence?” perguntou o Sr. Pickwick. “- A corda de dois pence, senhor”, respondeu o Sr. Weller, “é só uma pensão barata, onde as camas custam dois pence por noite.” “- Por que chamam uma cama de corda?” perguntou o Sr. Pickwick… “- Não é isso, senhor. Costumavam fazer as camas no chão; mas isso não dava certo de jeito nenhum, porque em vez de dormirem uns bons dois pence, os hóspedes ficavam deitados lá metade do dia. Então, agora elas têm duas cordas, a cerca de dois pés de distância uma da outra, e a três do chão, que vão até o fundo do quarto; e as camas são feitas de pedaços de serapilheira grosseira, esticados sobre elas”, disse o Sr. Weller, “A vantagem do plano é óbvia. Às seis horas da manhã, eles soltam as cordas de uma ponta, e os hóspedes caem.”
Essas histórias do passado deveriam promover uma apreciação mais profunda para a gestão de redes de segurança social. Caixões para dormir, cordas, abrigos que parecem mais com ratoeiras, dão a nítida impressão de que uma mentalidade de “Exército da Salvação” continua bem atual na Porto Alegre do Século XXI. Os abrigos oferecem um serviço crucial para os moradores de rua, mas parece que há uma expectativa de que os “beneficiados” suportem dificuldades como parte de uma pretensa “didática moral e espiritual”.
Decorrido um ano do incêndio na Pousada, as investigações prosseguem na Polícia Civil, numa Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara Municipal de Vereadores e, em um processo, na Justiça. Se o fogo teve como característica a rápida propagação, ritos de responsabilização, principalmente quando em casos de causas sociais e vítimas invisibilizadas, tomam, não raro, um ritmo lento e intermitente. Uma índole de garoa em meio a um nevoeiro.
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Foto da Capa: Four Penny Coffin / Reprodução