Vocês vão ter alguma dificuldade em acreditar nisso, e vão com certeza achar estranho, mas tudo bem. Quando me mudei para Porto Alegre, no início dos anos 1990, eu era ao mesmo tempo de uma profunda ingenuidade e de um temperamento paranoicamente desconfiado. Eu era meio fácil de ludibriar ao acreditar muito rápido na palavra das pessoas, e ao mesmo tempo tinha uma prevenção quase agressiva com qualquer estranho. O que levou, durante meu primeiro ano na Capital dos gaúchos, a um peculiar tipo de experimento em convivência urbana que passo agora a relatar para vocês.
Para outros, “isto poderia ter sido a roleta ou o hipódromo, mas não era dinheiro que eu procurava”, para repetir as palavras imortais de um escritor sobre o qual vou falar no fim deste texto, quando estivermos tratando da nossa indicação semanal de contos. Aos fins de semana na cidade, eu costumava ir para o Centro e, fingindo algum sotaque genérico (ou mesmo exagerando o meu específico sotaque da Campanha, ainda muito pronunciado naquela época), pedir informações a passantes aleatórios. A diferença é que, para manter o controle da experiência, eu sempre pedia alguma informação que eu já sabia. “O senhor sabe como eu chego daqui ao Mercado Público?”. “Por favor, qual ônibus eu devo pegar para o Campus do Vale da UFRGS?”. “Fica muito longe daqui o Cemitério São Miguel e Almas?”.
Como qualquer experimento inútil conduzido por uma mente juvenil errática, esse não tinha lá um método muito sólido além do mais selvagem empirismo, e não houve, por óbvio, tabulação rígida dos resultados, mas aquilo me deu um panorama de como poderia funcionar, em linhas muito gerais, a relação e Porto Alegre com estranhos: alguma gentileza, muita desinformação bem-intencionada e uma quantidade, para mim então surpreendentemente alta, de canalhice gratuita.
Resultados
Digamos, numa recapitulação sem rigor, que, de cada 10, sete respondessem com alguma cortesia. Desses, uns três davam informações diretas e precisas, uns quatro tinham alguma dificuldade para comunicar a ideia ou informavam de modo sincero que não sabiam dar a informação. Aqui e acolá aparecia também um raro e eventual passante que me dispensava com grosseria, mas foram muito poucos e estatisticamente irrelevantes. Mas de cada 10, uns três falavam com tanta cortesia e orientavam com tanta segurança uma direção tão avessa ao correto e um caminho tão distante do verdadeiro que eu só posso concluir que eram babacas tentando pregar um trote num forasteiro desavisado.
Como se pode imaginar quando se faz algo assim por algum tempo (acho que no meu caso a brincadeira durou uns quatro meses), você descobre, de modo até meio alarmante, o quanto uma cidade como Porto Alegre, “muito grande e tão pequena” pode ser desconhecida de seus próprios habitantes. Dependendo da complexidade da pergunta, o número de “não sei” aumentava exponencialmente, mas sempre havia aqueles gentis o suficiente para ao menos indicar uma segunda fonte de informação mais confiável. “Siga reto e vai aparecer um posto da Brigada. Acho que ali eles saberão informar”. “Não sei, mas por aqui o senhor chega no terminal da Praça Parobé. Lá deve ter algum ônibus que vai até onde o senhor precisa”. Uma circunstância sem malícia, em que o esforço da gentileza tenta se impor a um desconhecimento até certo ponto natural e que hoje considero bem compreensível, mesmo numa cidade de tamanho médio como Porto Alegre, com coisas que eu ainda não conheço por completo mesmo depois de três décadas.
O que me abismou nesse tipo de exercício na época foi o número, para o meu desconfiado entendimento de então, relativamente baixo de babacas voluntários, três em 10 (uma amostra de minha pouca familiaridade com a matemática propriamente dita é que três de cada 10 é bem perto de um terço, e eu só fui entender a real dimensão de um terço em tempos mais recentes, em que um terço do eleitorado brasileiro ativo se agarrou com devoção religiosa a um projeto político que, desnudado até o básico, é apenas tesão pela morte). O interessante é que, para meus juvenis e paranoicos propósitos de então, aquele tipo de jogo imotivado (não são esses os melhores?) forneceu uma radiografia interessante a partir da qual calibrar minhas relações com a cidade.
Juventude desviada
Para começar, os babacas que claramente estavam tentando me lançar a um caminho inapelavelmente errado eram todos homens. Não é uma estatística confiável o bastante para uma generalização, uma vez que, ao perceber que as mulheres respondiam sempre certo ou às vezes eram elas que se sentiam compreensivelmente desconfiadas com minha aproximação, passei a concentrar meus falsos pedidos de informação e fazer perguntas apenas a homens.
A maioria absoluta era de jovens que aparentavam estar mais ou menos na minha faixa etária de então, a dos 20 anos. Imagino que essa deva ser a idade ideal para se divertir com um trote tão aleatório que você sequer verá o desfecho. Alguém pede uma informação. Você manda o sujeito, que já pediu a informação porque, bem, porque não sabe, veio de fora, está um tanto confuso pelos códigos da nova comunidade, e você joga o cara na direção oposta. Sempre fiquei perplexo tentando decidir se o impulso por trás disso era crueldade gratuita ou uma espécie “filosófica” de crueldade pragmática.
Explico: no caso da crueldade gratuita, o desinformante apenas se comprazia em exercer um poder real oferecido a ele por um momento de acaso: a possibilidade de atrasar o dia de alguém com uma simples frase e um gesticular de mão voluntariamente enganadores. No caso da crueldade didática, talvez o indivíduo fosse aquele tipo de criatura que, bem ou mal, incluiu no trote uma lição válida sobre os novos códigos que o forasteiro não conhece: a cidade está cheia de babacas desocupados, não peça informações na rua.
Ando inclinado nos últimos tempos a pensar que a segunda alternativa foi resultado apenas do meu excesso de imaginação, e que o mais provável é que seja um homúnculo inconsequente usando de forma irresponsável uma fração de um poder temporário sobre o rumo de outra pessoa.
Tecnologia
Durante anos depois disso, meu procedimento quando havia a necessidade de pedir uma orientação real até um destino que eu desconhecia se manteve o mesmo: “procurar agentes oficiais”, como PMs, carteiros, azulzinhos (eles ainda não estavam por aí quando eu comecei o jogo, lá por 1992, só surgiriam depois da criação da EPTC, no fim dos anos 1990). Nunca recebi uma resposta particularmente equivocada de nenhum deles. Também me acostumei a consultar apenas senhores mais velhos, talvez porque depois de uma certa idade aqueles que não resolveram concorrer à presidência da República se cansam de serem babacas, mas o fato é que os mais velhos também eram menos adeptos a lançar um desavisado na fogueira. E, claro, a mulheres, quando havia a certeza de que a aproximação não as colocaria em alarme.
Mas claro, essa foi uma “práxis” que eu já abandonei há anos desde que o celular com internet passou a disponibilizar mapas. Do ponto de vista prático, foi um ganho, a diminuição de interações potencialmente danosas com estranhos dispostos a pregar um trote e fazê-lo pagar por ser um estranho no meio da cidade “deles”. Por outro lado, penso se não se perdeu um pouco do caráter didático aquele que falei. Hoje, para saber que um terço dos seus contemporâneos são potenciais babacas talvez você precise de outros métodos. Acompanhar o noticiário, talvez….
NEM TE CONTO Nº 7
Já que hoje falamos tantos de jogos urbanos gratuitos realizados por jovens meio equivocados na vida, o conto não poderia ser outro que não um clássico do gênero.
“MANUSCRITO ENCONTRADO NUM BOLSO”, de Júlio Cortázar
Do livro Octaedro (Uma das edições solo mais recentes foi pela BestBolso em 2011, mas está incluído também no Todos os Contos, da Companhia das Letras, de 2021)
Um narrador sem nome viaja todos os dias pelo metrô de Paris e, insatisfeito com o caráter aleatório com que os encontros amorosos se processam no mundo, decide elaborar para si mesmo um jogo rígido para encontrar uma mulher que possa amar – o jogo consiste em tomar uma complexa rede baldeações e conexões nos trens parisienses, mas só abordar qualquer mulher que mostrar potencial interessa na última etapa prevista para o dia. Nunca antes. Certo dia, uma passageira ao acaso o arrebata de modo tão intenso que ele quebra as regras do próprio jogo e decide se aproximar dela mesmo o movimento sendo interdito. Os dois começam um relacionamento que passa, então, a ser assombrado desde o início pelo fato de que o homem não consegue tirar da cabeça que só conseguiu conhecer seu possível verdadeiro amor “roubando” em seu próprio jogo, o que levará o caso de ambos a uma encruzilhada da qual provavelmente não haverá volta.
Se o título remete ao “Manuscrito Encontrado Numa Garrafa”, de Edgar Allan Poe, é porque Cortázar está, a seu modo, escrevendo a história contemporânea de um naufrágio, mas não nas imensidões do mar, e sim na multidão urbana da qual Poe também tratou. Uma gema narrativa que também pode ser lida como uma alegoria da criação literária num livro que reúne oito contos que eles próprios refletem sobre o labirinto de caminhos da criação artística.