Glória Maria sempre foi uma mulher firme no seu desejo e propósito de liberdade irrestrita. Em muitas entrevistas afirmou que ser livre foi sua força para construir sua carreira, sua vida e todas as disrupções como uma mulher negra que foi além de todas as impossibilidades.
A liberdade de Glória, abraçada com toda a sua força, a partir de seu DNA ancestral, fez dela uma mulher preta brasileira única, singular e atemporal. Passou como jornalista dos tempos da ditadura e de um presidente militar que dizia: tirem esta neguinha de perto de mim até as inesquecíveis reportagens nada protocolares mostrando culturas, países e singularidades humanas.
Você imagina o que deveria ser a mente desta mulher depois de tantas vivências para se limitar a contar o tempo, ou ser contada por ele como uma pessoa de visão normatizada pela sociedade machista, racista, patriarcal e eurocentrada que é o fundamento da relação e limitação das mulheres a partir de marcadores como padrão físico, etário e social?
Talvez fazer este exercício de pensamento reverso ajude as pessoas a saírem das falas sobre a idade que Glória morreu, a idade que Glória transparecia, a idade que Glória escondia, e seus julgamentos sobre uma mulher preta que viveu sob o guarda-chuva de um só valor: a liberdade de ser quem é e quisesse ser. Apenas livre para viver, transitar, experienciar, conhecer e se reconhecer no mundo.
Glória não respondia ou seguia padrões geracionais, sociais ou de gênero. Por que deveria seguir padrões etários ou dar importância para a idade? Em entrevista ao Roda Viva ela declarou: “Eu não escondo a idade. Eu só não quero ser escondida por ela”. Pontual, clara, direta e reta como sempre. Ela não precisou gastar seu tempo de vida hablando sobre etarismo. Ela procurou seguir sua verdade e novamente foi incessantemente julgada por “esconder” a sua idade. É de uma presunção ridícula esta leitura do esconder. Ela tinha a liberdade de divulgar ou não. E não quis. Mesmo assim não foi respeitada.
Em um programa do Fábio Porchat gravado e circulando na internet ela mesmo diz: “Quando eu morrer quero uma lapide que não diga de tanto a tanto. E sim, aqui uma mulher que morreu sem idade.” E aí a 1ª coisa que fizeram?
“Morreu hoje, a jornalista Glória Maria, XX anos…”
O etarismo está entranhado na maneira das pessoas verem o mundo e marcarem a presença do tempo de maneira gregoriana e eurocêntrica. Talvez mais que o etarismo a gente possa se debruçar a ressignificar a noção de tempo.
Nas culturas africanas o tempo é espiralar, como bem ensina a poeta, ensaísta e ancestral viva brasileira Leda Maria Martins em seu livro: “Performances do tempo espiralar, poéticas do corpo-tela. Neste livro:
“Em Performances do tempo espiralar, poéticas do corpo-tela, a ensaísta, poeta, dramaturga e professora Leda Maria Martins explora as inter-relações entre corpo, tempo, performance, memória e produção de saberes, principalmente os que se instituem por via das corporeidades. Em novas dicções, a autora consolida o conceito de tempo espiralar, que surge pela observação de práticas comunitárias e no fundamento cognitivo de vários grupos étnicos africanos – que nas Américas recriaram seus laços de pertencimento telúrico. Isso acontece, sobretudo, nas culturas fincadas na oralidade e na cosmovisão ancestral cujas práticas performativas celebram o corpo como lócus da memória. Essa percepção cósmica e filosófica entrelaça, no mesmo circuito de significância, a ancestralidade e a morte. O passado habita o presente e o futuro, o que faz com que os eventos, desprovidos de uma cronologia linear, estejam em processo de perene transformação e, concomitantemente, correlacionados. No livro, a autora propõe que a experiência e a compreensão filosófica do tempo podem ser expressas por uma inscrição não necessariamente discursiva e mesmo não narrativa, mas não por isso menos significativa e eficaz: a linguagem constituída pelo corpo em performance, das liturgias do Reinado ao teatro e às artes cênicas. Dialogando com outros pensadores como Alfredo Bosi e João Guimarães Rosa, Leda Maria Martins desconstrói a dicotomia entre oralidade e escrita enfatizada pelo Ocidente, que prioriza a linguagem discursiva como modo exclusivo de postulação de conhecimento. Performances do tempo espiralar, poéticas do corpo-tela apresenta uma temporalidade que se curva para frente e para trás, ao redor e para cima, em movimentos espirais que retêm o passado como presente (ou presentifica o passado) para moldar o futuro. Assim, a autora descoloniza o pensamento Ocidental e requalifica a África como continente pensante. A palavra também se inscreve no corpo, na memória, no tempo. “[…] A ancestralidade é clivada por um tempo curvo, recorrente, anelado; um tempo espiralar, que retorna, restabelece e também transforma, e que em tudo incide. Um tempo ontologicamente experimentado como movimentos contíguos e simultâneos de retroação, prospecção e reversibilidades, dilatação, expansão e contenção, contração e descontração, sincronia de instâncias compostas de presente, passado e futuro.”
Glória já sabia que a ancestralidade vivia nela conectando passado, presente e futuro diluindo as fronteiras do tempo ocidental e corpóreo num Brasil fundado pelo racismo.
Glória foi e é ancestral presentificado numa passagem rápida, e tinha memórias de que este tempo daqui não a representava. Então estava livre para não se moldar a ele.
Glória Maria tem o direito de ser livre e morrer sem idade pela cosmogonia do tempo espiralar.
Descolonize seu pensamento e encontrará o tempo espiralar de Glória.
PS: dedico este artigo à comunidade de futuros sob a qual aprendi a descolonizar meu pensamento e enxergar o tempo como espiralar.