Semana passada a frase desse título, sem maiores pretensões, acabou alcançando muita gente na rede social. Ela vinha acompanhada de outra na sequência: esse não é um post sobre livros. Ao ver a crescente quantidade de pessoas se identificando e gostando do tal post, fiquei refletindo sobre o motivo e sobre como esse tipo de declaração atinge quem se identifica com ela e por algum motivo não consegue achar um jeito de expressar.
A ideia surgiu ao pensar sobre meu plano de um próximo livro, quem sabe um romance. Pensei no meu estilo de escrita, menos linear, nada organizado, com um vestido de confusão e profundidade que nunca me pareceu funcionar para uma narrativa longa. Então me perguntei se um livro meu não acabaria se tornando algo que eu não gostaria, que seria um “livro de mulheres”, ou um conteúdo que de fato tocaria mais mulheres do que homens, porque supostamente mulheres conseguiriam deixar-se tocar por escritas mais densas e internas.
Quero produzir narrativas que se pretendam humanas, existenciais, para além do homem ou da mulher. Mas entendi também que talvez mulheres sejam mais profundas de fato, algo meio atávico, meio animal. Talvez seja pelo útero que sangra, pelas culpas, pela angústia, pela solidão.
Mas será que homens não sabem ler mulheres de fato? A frase se aproveitou da possibilidade do duplo sentido e talvez o que atingiu em cheio as mulheres especialmente que deram o like foi justamente a constatação empírica de várias de nós, mulheres, de que homens não sabem nos ler, nos observar, escutar as sutilezas do desejo, da busca. Não acho que essa constatação seja generalizável. Já conheci homens extremamente sensíveis, profundos, sagazes para questões do interno (ok, foram pouquíssimos, admito). O outro sentido da frase, mais literal, me parece bem mais unânime e talvez corrobore com a ideia do primeiro.
Estamos num momento profícuo e rico de mulheres escritoras dando voz a uma literatura de primeira qualidade e que justamente aborda o feminino. Giovana Madalosso, Natalia Timerman, Carla Madeira, Aline Bei, Tatiana Salem Levy e tantas outras. Escritoras que para além de seu conteúdo forte e consistente, falam sobre mulheres, suas relações, sobre politica, sociedade, problematizam a vida para além da literatura. Acho que poucos homens leem essas mulheres, mas, voltando ao outro sentido, o que convocou tantos likes, também acho que essa leitura precária é do mundo interno feminino.
A primeira mulher de todos nós é a mãe ou a figura materna, aquela que nos inaugura no cuidado, calor, alimento, proteção, espelho. Um bebê vai conseguir ler uma mãe à medida em que ela puder estar livre e disponível para isso. Antes disso, uma mãe precisa ler seu bebê. Esse pequeno pacote que chega como um dialeto estranho, sem dicionário prévio, e o pior: cheio de gente trazendo o seu próprio dicionário para uma “ajuda” que na maioria das vezes atrapalha muito mais do que apoia.
Será que as mulheres tem conseguido se oferecer aos seus leitores? Somos indecifráveis? Freud sempre admitiu que não conseguia entender as mulheres. Dizia, como minha amiga e competente colega Marina Camargo lembrou em seu comentário no meu referido post, que ele deixou essa tarefa para os poetas. Talvez tenha sido uma boa ideia, ou então uma saída inteligente para não se deparar com tamanha dificuldade. Ainda assim, Freud conseguiu dar voz ao sofrimento e a uma sexualidade represada no universo feminino que as levavam a males do corpo, à histeria, e nasce então a Psicanálise.
Somos boas falantes. Não por acaso foi por conta das mulheres que a Psicanálise começou. Foi uma mulher quem disse a Freud “Me deixa falar”, fazendo-o então abandonar a hipnose. Precisamos falar, precisamos ser escutadas. Precisamos que mais mulheres falem por nós, que homens aprendam nossa língua.
Não quero entrar num discurso generalista e excludente. Eu acredito nos dilemas humanos, num sofrimento que vem do desamparo de nos sabermos finitos e muitas vezes reféns de um inconsciente que nos governa e nos leva tantas vezes a ser escravos de nossas neuroses. Homens e mulheres querem ser lidos e escutados – às vezes erroneamente mais do que lerem e escutarem a si mesmos. Mas há algo do feminino que permanece mistério. Talvez seja melhor assim, talvez sigamos produzindo literatura, poesia, música, arte para dar conta desse grande enigma que é sermos e termos mulheres. O analfabetismo emocional só poderá ser combatido com letras espalhadas por aí, letras e palavras, sangue e hormônios, pele e amor. Vida é feminino.
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Foto da Capa: Freepik