Nova York, cantada em tantas músicas, cenários de tantos filmes e séries é conhecida por sua vibrante vida cultural, com teatros e museus magníficos, além de ser uma cidade multicultural, um centro financeiro e o lar de cerca de 2 milhões de ratos.
Sim, ratos são o assunto do momento na grande metrópole, a ponto do Prefeito Eric Adams os declarar “inimigos públicos número 1” e nomear uma pessoa dedicada exclusivamente ao combate a eles: a diretora de mitigação de roedores, apelidada pela população de “czarina dos ratos”. Porém, apesar do apelo midiático e dos esforços governamentais, a “Guerra aos Ratos” está fadada ao fracasso, segundo o ecologista urbano Jason Munshi-South, que estuda o tema há mais de uma década.
Em artigo para o jornal New York Times publicado na última semana, o cientista faz um raio-x do problema que poderia servir para tantas políticas públicas equivocadas de nossos tempos: a vazia retórica belicista, métodos violentos e sem embasamento científico, a falta de atenção aos fatores socioambientais que contribuem para o agravamento do fenômeno, como a desigualdade social e as mudanças climáticas. O resultado: piora nas condições de saúde física e mental da população atingida.
Na falta de um “flautista de Hamelin” que pudesse resolver o problema, Kathleen Corradi foi contratada por demonstrar “o impulso, a determinação e o instinto assassino necessários para lutar contra o verdadeiro inimigo – a implacável população de ratos da cidade de Nova York”. Qualquer semelhança com a chamada “Guerra às Drogas” não é mera coincidência.
Nesse combate são utilizados em abundância métodos dolorosos e inúteis: iscas espalhadas nas onipresentes caixas-pretas nas calçadas, veneno, armadilhas com colas e ratoeiras. Mas, como diz Jason, essas armas não são páreo para a biologia e a matemática da reprodução dos ratos. Basta um pequeno número de ratos, sobreviventes ou migrantes, para restabelecer uma população. Afinal, cada fêmea pode dar à luz duas ou três dúzias de filhotes em sua vida que dura cerca de um ano. Mais do que extermínio, faz-se necessária uma política de manejo de populações animais. Mas isso talvez não tenha tanto apelo midiático.
As políticas não são sustentadas por dados confiáveis: não há monitoramento do número de ratos, dos locais onde vivem ou se estão sendo afetadas pelas medidas tomadas. Pense que, no meio de uma crise sanitária que apavora a população, o governo abrisse mão de produzir dados para mostrar o que está acontecendo na cidade? Inimaginável, não?
Como em tantas outras questões atuais, as desigualdades sociais agravam e são agravadas pela epidemia de ratos. Os melhores serviços de limpeza nas áreas ricas de Midtown Manhattan fizeram com que os roedores desaparecessem de lá, transformando-as em “desertos de ratos”. Já nos bairros pobres, a baixa qualidade dos serviços públicos de limpeza combinados com edifícios mais antigos e degradados ajudam os animais a proliferar e, literalmente, mastigar a fiação elétrica de carros e residências.
Às desigualdades sociais somam-se às raciais. O bairro com maior número de reclamações é o Harlem, onde, segundo uma moradora contou em um vídeo que viralizou, os ratos “tem o tamanho de um Crocs”. Mais de 80% da população do Harlem é latina ou negra enquanto na citada Midtown Manhattan 68% da população é branca e os negros não chegam a 3% dos moradores da região.
A proliferação dos ratos nas áreas pobres de Nova York é um problema de saúde pública já que os bichos são vetores de transmissão de doenças. Além disso, levam à desvalorização dos imóveis e ao agravamento da degradação dessas vizinhanças, prejudicando a saúde mental de seus moradores.
As mudanças climáticas dão um toque a mais de dramaticidade ao problema já que a cidade vai adquirindo características de uma zona subtropical úmida, dando chance para que os ratos se reproduzam durante períodos mais longos todos os anos, facilitando o seu crescimento populacional.
A principal causa da multiplicação dos ratos é que eles têm o que precisam na “cidade que nunca dorme”: comida fácil e abundante. Aí entra uma das nossas questões ambientais recorrentes: o desperdício de comida. Os nova-iorquinos desperdiçam toneladas de comida diariamente, o que dá e sobra para as 30 gramas diárias capazes de sustentar um rato adulto.
Para acabar com essa super oferta de alimentos seriam necessárias medidas combinadas como a instalação de lixeiras e containers de lixo mais eficientes, melhorar os serviços de coleta de lixo nos bairros específicos e fazer com que os alimentos não cheguem ao sistema de resíduos pela compostagem obrigatória. Além disso, novos regulamentos sanitários devem exigir mais cuidados das empresas que manipulam alimentos e produzem resíduos orgânicos.
Todas essas políticas exigem articulação entre governo, universidades, empresas e população. Daí, fica mais fácil espalhar armadilhas químicas e ratoeiras pela cidade e esperar que elas façam milagres.
A maior dificuldade, contudo, está na necessidade de se criar novos hábitos de alimentação e de armazenagem e descarte de resíduos. Desperdiçar menos comida, tampar as sobras que vão para o lixo, não deixar sacos de lixo horas a fio nas calçadas, restringir a alimentação nas ruas são medidas simples e eficientes mas que exigem a mudança de hábitos. Fazer com que seres humanos mexam no seu cotidiano e mantenham esses novos comportamentos não é tarefa das mais simples, como sabe cada pessoa que quer parar de fumar ou ir treinar na academia.
Como conclui Jason Munshi-South, “acabar com a guerra eterna contra os ratos será longo e desafiador, mas devemos começar focando no nosso comportamento, não no deles”, afinal, “o inimigo somos nós”. Enquanto isso, os ratos, que não estão nem aí para as dificuldades humanas, vão se esbaldando na comida e estão se multiplicando à vontade. Depois, ainda há quem ouse dizer que nós somos os animais inteligentes.