Essa foto tem 32 anos. E, até hoje, só tinha sido publicada em um, ou dois grupos de amigos e num story no meu perfil no Facebook. Ela até foi oferecida aos editores do Jornal de Angola. Recusaram alegando muito contraste entre a simplicidade das roupas dos adultos, especialmente os calçados, com o traje do gurizinho, o miúdo no dizer angolano.
Era um dia do começo de maio de 1991. A multidão ocupava, desde cedo, quase até a pista do acanhado aeroporto de Luanda. Naquela manhã, desembarcaria lá o presidente de Angola, José Eduardo dos Santos, do comunista Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), que voltava de Portugal onde tinha assinado o acordo de paz com Jonas Savimbi, líder da anticomunista União pela Libertação Total de Angola (Unita). Aliás, a impressão que se tinha era que a população da cidade inteira saíra às ruas.
Afinal, Zédu, como os angolanos chamavam o presidente, trazia a confirmação do fim da guerra civil que já matara mais de 300 mil e deixara milhares de mutilados. O acordo também determinava a realização de eleições e a transição de Angola do comunismo para um regime de livre mercado. Mal sabia o guri que a festa duraria pouco…
Vivi o começo dessa transição como integrante de um time de profissionais brasileiros de comunicação levado por uma agência de propaganda brasileira contratada pelo governo daquele país. Nossa missão: modernizar os veículos de comunicação – todos oficiais – e prepará-los para os novos tempos que chegavam. Teria o pai daquele menino, segurando a foto de Zédu, que o filho naquela inocente espontaneidade beijava, ideia do que viria pela frente?
A mudança começava, como sempre, pela comunicação, pela palavra. A partir daquele começo de maio de 1991, toda palavra que tivesse qualquer conotação com o comunismo deveria ser evitada, se não banida. Popular não podia mais. Nem camarada…Agora, o camarada diretor, era só diretor. O bordão “a luta continua, a vitória é certa”, que encerrava todos os comunicados oficiais foi deixado pra lá…
Até o nome da emissora de TV teria que mudar. Não poderia mais ser chamada de TPA, Televisão Popular de Angola. Popular não podia mais. Aí, ficou TPA, Televisão de Angola. Convencemos o pessoal a deixar o P porque TPA dava uma sonora e ritmada vinheta (pronuncie aí, meio cantando pra ver se não tínhamos razão…).
E assim foi. O Jornal de Angola começou a ter matéria editadas em lugar das íntegras dos discursos de dirigentes partidários. As reportagens passaram a ter personagens do povo. Na TV, os discursos de horas do presidente, que antes eram transmitidos na íntegra, passaram a ser editados com legendas destacando os trechos mais importantes. Em todos os veículos se falava na eleição que seria realizada em 1992. Teve campanha, com os candidatos pedindo votos na TV. O povo foi às urnas, com acompanhamento da ONU, nos dias 29 e 30 de setembro. O MPLA ganhou a eleição para a Assembleia Nacional. E, como não poderia deixar de ser, a disputa pela Presidência foi polarizada entre José Eduardo e Jonas Savimbi. Zédu ganhou com 49,57% dos votos contra 40.07% de Jonas Savimbi. Teria que haver um segundo turno. Não houve. A Unita não aceitou o resultado e voltou para a selva.
A guerra – para susto do gurizinho do aeroporto e o pai dele – recomeçou. José Eduardo, então, começou um enorme trabalho diplomático em busca de reconhecimento internacional. E conseguiu. Em 1993, os Estados Unidos retiraram o apoio à Unita e reconheceram o governo angolano. Mas a guerra só acabou em 2002, quando Savimbi foi morto em combate.
José Eduardo dos Santos foi presidente de Angola de setembro de 1979 a setembro de 2017. Até morrer, no ano passado, doente em Barcelona, foi da glória ao fundo poço acusado de vários malfeitos. A corrupção, o pior.
E aqui eu volto ao nosso miúdo beijando a foto do ídolo. O que terá sido feito dele nesses 32 anos? Acompanhando a trajetória de Zédu. Terá ele se juntado à oposição para acusar o antigo líder de nepotismo – a filha de José Eduardo foi nomeada presidente da empresa de petróleo e está, hoje, entre as mulheres mais ricas do mundo – de nepotismo, corrupção e autoritarismo? Ou terá ele se mantido fiel ao dirigente do MPLA, que levou Angola a um lugar de destaque na economia africana?
Ah! Claro você está curioso por mais informações sobre o personagem da foto. Pois é… eu também. E bem que tentei. Mas levei quase um corridão do pai com a reclamação veemente: pare com isso! A fotografia chupa a alma!!!
Não voltei mais a Angola. Mas o país mudou, como queriam lá em 1992. E só mudou quando o barulho dos tiros e das bombas cessou para deixar que a comunicação se faça, outra vez, pela palavra. Onde andará o guri beijoqueiro?
*Este texto foi publicado originalmente aqui em 22/05/2023
Foto: Acervo do autor