Aparentemente, está voltando à moda enunciar o óbvio: bilionários são um desafio moral e ricos têm uma grande propensão natural em ser babacas. Estreou neste fim de semana na plataforma Netflix The Glass Onion, filme dirigido por Ryan Johnson que dá continuidade às aventuras policiais de um detetive chamado Benoit Blanc, que já havia aparecido no ótimo Entre Facas e Segredos, produção de 2019 também dirigida por Johnson para a Netflix – aliás, um parêntese necessário: é bem curioso que o título do primeiro tenha ganhado uma tradução brasileira meio enfeitada, dado que “Knives out”, seu nome original, era de mais difícil transposição para o português, enquanto este segundo, que poderia ser simplesmente chamado “Cebola de Vidro”, um conceito presente no próprio filme, aliás, manteve a denominação original. Fim do parêntese.
Na trama, um grupo de amigos formados por gente da pior qualidade é convidado pelo autoproclamado “líder da turma”, um bilionário chamado Miles Bron, para passar um fim de semana na ilha particular do ricaço desvendando o mistério de seu “assassinato”, em um jogo meticulosamente planejado. O detetive visto no filme anterior, Benoit Blanc, também recebe um convite, enviado em uma caixa cheia de enigmas que destravam outros até finalmente conceder acesso ao cartão que franqueia a entrada na ilha.
Assim como Entre Facas e Segredos era uma reinvenção dos mistérios clássicos de assassinato criados por Agatha Christie em que um magnata voluntarioso é morto e todos os seus familiares poderiam ser suspeitos, aqui a “fórmula” com a qual o diretor brinca é a de tramas como O Misterioso Caso de Styles ou E Não Sobrou Nenhum, da mesma autora, em que uma série de convites leva um grupo de pessoas a algum lugar suntuoso em que um crime será cometido.
Ao longo da história, contudo, o mistério é um elemento secundário às relações existentes entre os personagens e que são apresentadas ao detetive e ao espectador, todos gravitando em volta do dono da ilha, representado por Edward Norton como uma caricatura de nomes como Mark Zuckerberg, Jeff Bezos ou, principalmente, Elon Musk: o sujeito que fez fortuna sendo muito esperto e que é confundido com um gênio simplesmente porque tem grana o bastante para contratar pessoas mais inteligentes para fazer o trabalho. E, com seu dinheiro, ele pode comprar até mesmo alianças e lealdade do grupo que hoje ocupa boas posições.
Caricaturas
Elon Musk e outros do tipo, aliás, também são caricaturizados por um dos grandes autores contemporâneos de ficção científica, John Scalzi, autor de A Guerra do Velho, em seu romance mais recente, The Kaiju Preservation Society, no qual um bilionário inescrupuloso é o grande antagonista de uma trama em que a humanidade descobre que existe uma brecha entre a nossa realidade e uma dimensão paralela habitada por monstros gigantes (os “kaijus” do título, referência aos monstros gigantes tradicionais da cultura pop japonesa, como Mothra ou Godzilla, citado no texto, aliás). Assim como em The Glass Onion, o personagem bilionário enriquece apropriando-se de ideias dos outros – no caso do livro, a fortuna dessa espécie de “farialimer” gringo é construída criando startups imaginadas por outras pessoas para depois vendê-las com muito lucro.
Junte a isso a imagem de um bilionário da tecnologia como alguém que contribui para a literal destruição do planeta em nome de potenciais lucros com um asteroide que vem em direção à terra, no fenômeno de discussões do ano passado, Não Olhe para Cima, ou o sucesso recente das duas temporadas da série White Lotus, em que uma trama de mistério é diluída na narrativa de um grupo de gente rica escrota dando tratos à imaginação para criar novas formas de desdém e humilhação para cima dos funcionários de resorts de luxo – um diferente a cada temporada.
E aí, talvez possamos identificar uma tendência que, se tudo der certo, é a resposta cultural à infantil imagem do bilionário como um cruzado pela Justiça ou um super-herói tecnológico popularizada pela ascensão recente dos filmes de super-heróis. Vislumbra-se aí a explosão de uma tendência que já vinha sendo gradativamente ensaiada na representação constante de magnatas do mundo corporativo tecnológico como pessoas sem escrúpulos e que, sob uma fachada de discurso bem-intencionado de “inovação para mudar o mundo”, está na verdade aumentando suas margens de lucro. Traduzindo em termos mais claros: podemos estar, felizmente, voltando a um consenso cultural de que os ricos são parasitas com pouco a contribuir eles próprios para o mundo e para a sociedade – e isso é muito bom.
Tradução
O que está em jogo na criação dessas novas imagens de bilionário como vilão ou como fraude solipsista é uma espécie de tradução para o plano do entretenimento de uma percepção pública cada vez maior: a de que, a menos que você seja rico também ou um filiado no Partido Novo, ser fã de rico é uma roubada, e as figuras incensadas pelo recente capitalismo tecnológico como geniais são na verdade uns tipos sinistros que, se deixados soltos, terminarão por privatizar e monetizar tudo, até suas ondas cerebrais – quando não são idiotas o bastante para deixarem desastres de proporções épicas atrás de si, de vazamentos gigantescos de dados pessoais até, acredite, genocídio.
Na última década, praticamente uma vez por ano, no mínimo, tivemos notícias de algum escândalo de vazamento de dados confidenciais em plataformas ou redes. As 3 bilhões de contas afetadas pelo hackeamento do Yahoo em 2013; o acobertamento de uma falha de segurança ignorada pela Uber em 2016; a entrega pelo Facebook de dados pessoais para a Cambridge Analytica, a lista pode seguir indefinidamente – lembrando ainda que, logo no início de 2021, um vazamento do gênero teve lugar no Brasil, afetando dados pessoais de cerca de 220 milhões de pessoas no país que tiveram o sigilo de CPF, foto de rosto, endereço, telefone, e-mail, score de crédito, salário comprometidos. Está aí, portanto, a raiz de alguns medos bem palpáveis que alimentam os retratos recentes de milionários da tecnologia como uma gente potencialmente idiota e certamente perigosa.
Claro que as megatechs já são há muitos anos esses mastodontes monopolistas que, por meio de caminhões de dinheiro despendidos nos lugares certos, estão minando o poder e a capacidade de organização do trabalho. O descrédito ou a proibição de sindicatos, a corrupção política sistemática dos representantes políticos em direção aos interesses das grandes companhias, a precarização do trabalho e a vaporização da riqueza, retirando o valor do trabalho e colocando-o em um tipo de patrimônio imaterial que só beneficia os mesmos atores de sempre, a criação de “espaços de convívio” que pretendem transformar o trabalho em “diversão”, escamoteando a natureza da relações laborais no moderno capitalismo, todos são elementos já bastante conhecidos do modo de ação do capitalismo empresarial. O que é novidade é a forma como a figura dos “milionários high tech” ganharam status mitológico na consciência pública desde o surgimento de nomes como Steve Jobs e Bill Gates nos anos 1980. À medida que o tempo passava, foi ficando claro que não havia nada muito diverso nesses novos magnatas celebridades dos sombrios industrialistas do século 20, financiando assassinatos, terrorismo e golpes de estado para garantir seu lucro em primeiro lugar.
Horrores involuntários
A última década e meia do entretenimento blockbuster foi dominada pela figura dos heróis de quadrinhos transpostos para o cinema de massas. Nessa transposição, houve, claro, espaço para versões atualizadas do tropo ancestral do “cientista louco” que de algum modo também está na base da imagem negativa dos bilionários do silício, como o Lex Luthor de Jesse Eisenberg ou os rivais de Tony Stark nos dois primeiros filmes, mas eles eram apresentados como indivíduos com princípios viciados e, portanto, sua vilania era uma questão pessoal – assim como a nobreza de propósitos de homens como Bruce Wayne/Batman e Tony Stark/Homem de Ferro era o que os tornava heróis essencialmente altruístas (mesmo sendo bilionários com interesses espalhados por toda parte, inclusive o comércio de armas). Essa ideia do “rico ético como herói salvador” não é a RESPONSÁVEL por essa percepção meio doida, mas vejo um nítido paralelo entre a forma como essa imagem caiu no gosto do público mais ou menos ao mesmo tempo em que a mídia elevou os bilionários do Vale do Silício a figuras “heroicas” da vida real (não esquecer que, num tópico correlato, em um intervalo de dois anos houve, na década passada, DUAS cinebiografias diferentes de Steve Jobs – sem falar de A Rede Social, que tomava liberdades biográficas para tornar Mark Zuckerberg numa espécie de figura trágica).
Boa parte desse novo modelo de percepção pode ser creditado aos próprios bilionários. Jeff Bezos e seu foguete-piroca rasgando os céus, Elon Muks e seu show de humor involuntário na condução do Twitter, de uma das maiores redes sociais disponíveis na internet para algo parecido com um reddit de segunda mão da extrema direita. Originalmente ambos podem ter se beneficiado de uma imagem mais nobre associada a suas vagas intenções de “colonizar Marte” ou “explorar o espaço”, mas à medida que foram ampliando seus tentáculos na disputa da opinião pública, foram também sendo conhecidas suas práticas, como o violentíssimo lobby antissindical de Jeff Bezos ou a confissão de Elon Musk de que seu dinheiro pode ter ido passear na Bolívia e aproveitou para comprar um golpe de Estado como suvenir de viagem.
Já estava na hora mesmo de a cultura pop se dar conta de que os ricos não estão aqui para salvar ninguém – mas que, se a coisa der dinheiro o bastante, eles até podem vender a ideia de que sim.
PS: Este texto surgiu após conversas com um amigo, o escritor Samir Machado de Machado, e por isso, encerro com um agradecimento pela ideia.