A história da área onde hoje funciona a horta comunitária da Lomba do Pinheiro (HCLP) tem muito a ver com a pujante e persistente área rural de Porto Alegre, suas proximidades com o Parque Saint Hilaire, bem como com a história de formação do bairro Lomba do Pinheiro, criado por Lei Municipal em 1997 e sua forte tradição no movimento comunitário de Porto Alegre. Antigos moradores e lindeiros dessa área já cultivavam e criavam animais naquela terra, comercializando hortifrutigranjeiros, leite e outros produtos, que abasteciam o bairro e as regiões mais próximas.
Já a história da HCLP se inicia em maio de 2004, com a implantação do comitê regional do Fome Zero na região, cujo foco principal era trabalhar com famílias que tinham na sua composição crianças de zero a seis anos de idade em risco nutricional. Era um projeto coletivo de produção orgânica segundo os princípios da ecologia, com enfoques pedagógico, terapêutico e de inclusão social.
Em sua fase atual, a HCLP funciona desde 2011 na Parada 12A da Avenida João de Oliveira Remião. Desde então, acompanho com entusiasmo esta experiência como agrônomo voluntário.
Integra uma Área de Proteção ao Ambiente Natural – APAN, de aproximadamente 04 hectares – com floresta em mais de 03 deles, criada pela Lei Municipal Nº 12.089, de 1º de julho de 2016, fruto de uma mobilização comunitária liderada pela horta.
Sua área direta, em torno de 0,7 hectare deste total, tem garantia de execução e permanência do projeto da horta comunitária por meio de comodato da Prefeitura Municipal com a Associação de Moradores da Vila Pinhal da Lomba do Pinheiro (AMOVIPA), sendo 0,2 hectare ocupado em estufa para produção de mudas, cozinha comunitária, cercas vivas e outros espaços coletivos; e 0,5 hectare com cultivo agroecológico e agroflorestal, incluindo algumas unidades de centenas de variedades de espécies presentes no espaço – um verdadeiro banco genético, bem como foco em plantas alimentícias não convencionais (PANCs), plantas medicinais, flores comestíveis e árvores frutíferas.
A AMOVIPA tem atuação focada na melhoria de diversos aspectos na comunidade e participa do Conselho Popular da Lomba do Pinheiro. Mantém a gestão de uma escola de educação infantil conveniada à Secretaria Municipal de Educação (SMED) e é a entidade que lidera o projeto Horta Comunitária Lomba do Pinheiro.
O projeto atende pessoas da comunidade local, de outras regiões e municípios; grupos das unidades básicas de saúde, instituições da assistência social, alunos de escolas municipais (educação infantil e fundamental) e universitários. Mais de vinte mil pessoas já foram atendidas em mais de 10 anos de existência ininterrupta deste projeto.
Além de voluntários que realizam atividades na horta, o projeto conta eventualmente com a cedência de servidores públicos municipais, especialmente nas áreas de educação, saúde e assistência social. Da mesma forma, tem contado com a participação de pessoas em situação de cumprimento de medidas socioeducativas por meio de prestação de serviços comunitários.
Para entendermos a importância de uma horta urbana desta dimensão, precisamos compreender seu papel multifuncional, não apenas de produzir alimentos; sobretudo produzir com reflexão conectada aos movimentos ambientais e sociais que reivindicam o direito à cidade, a promoção de ambientes mais saudáveis e sustentáveis, espaços ao ar livre e contato com as plantas, especialmente as alimentícias. Ela propõe reinventar as cidades por meio de saberes coletivos em vez de especulação. No lugar dos desertos de concreto, a natureza, os afetos e a comida de verdade.
Mas a HCLP é hoje muito mais que uma simples horta. Pela sua localização estratégica numa APAN, história de liderança comunitária e temática, bem como tamanho da área e persistência exitosa do projeto ao longo dos anos, ouso afirmar com convicção que é atualmente um grande centro estadual de referência em hortas urbanas, menina dos olhos da agricultura urbana e periurbana (AUP) no RS.
Além de ser inspiração para dezenas de outras hortas comunitárias, coletivas e domésticas em Porto Alegre e outros municípios gaúchos, a partir do final de 2017, um grupo de pessoas e instituições, liderados pela HCLP, como o Instituto Renascer, Federação Riograndense de Associações Comunitárias e Moradores de Bairros (FRACAB), Emater/RS, Secretaria Estadual de Desenvolvimento Rural (SDR), Universidade Federal do RS (UFRGS), Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Rio Grande do Sul (FETAG/RS), entre outras, criamos o Fórum Gaúcho de Agricultura Urbana e Periurbana Sustentável.
Durante o ano de 2018, a discussão aprofundou-se e o fórum foi fortalecido. Outras pessoas e instituições, como a Fundação Gaúcha do Trabalho e Ação Social (FGTAS), Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e Associação das Hortas do Centro Histórico de Porto Alegre agregaram-se ao processo. Identificou-se a necessidade de criar uma política estadual de agricultura urbana e periurbana.
Então, junto com técnicos da SDR, o fórum estadual construiu uma minuta de projeto de lei que foi entregue ao então governador do estado. O governo acolheu a proposição e apresentou ao parlamento gaúcho. A proposta foi aprovada por unanimidade e nasceu a Lei n°15.222/18, que dispõe sobre a política estadual de agricultura urbana e periurbana no Rio Grande do Sul, bem como o seu respectivo Decreto Estadual nº 54.459/18. Vale ressaltar que esta legislação, em que pese ainda não tenha saído do papel, foi gestada na base, de baixo para cima, ou seja, proposta incluindo os principais atores do processo.
Já em 14/08/2021 lançamos o Fórum de Agricultura Urbana e Periurbana de Porto Alegre, o FAUPOA. E só podia ser também na horta comunitária da Lomba do Pinheiro, lugar que consideramos simbolicamente sagrado para quem cultiva plantas no ambiente urbano.
Dois grandes desafios se apresentaram imediatamente para o fórum municipal: conhecer/integrar as diversas experiências de hortas existentes em Porto Alegre e contribuir para consolidar uma política municipal de AUP em nossa capital.
No primeiro ano do FAUPOA, mesmo ainda saindo da pandemia, mantivemos um encontro presencial por bimestre, visitando seis espaços e experiências ligadas às hortas. Assim, passamos pela Escola Miguel Dario, Rede Calábria, Unidade de Saúde Wenceslau Fontoura, Horta Escolar Comunitária Jardim do Salso junto a Escola Fernando Gomes e Centro Agrícola Demonstrativo, no Parque Saint Hilaire.
E na manhã do último dia 03/12, a Horta Comunitária da Lomba do Pinheiro foi palco do 7º Encontro Presencial do FAUPOA. A atividade teve a participação de cerca de 50 lideranças que debateram sobre as potencialidades e dificuldades das hortas urbanas no município.
Ficou encaminhada a realização do 1° Congresso do FAUPOA na primeira quinzena de março de 2023. As iniciativas de hortas coletivas que queiram participar como membro do fórum acessem e preencham o formulário aqui. Ao concordar com a Carta de Princípios, estará apta a indicar um representante. O limite para preenchimento do formulário é 28/02/2023.
Atualmente, possuímos 40 hortas cadastradas em nossas plataformas no município de Porto Alegre. Com a colaboração do Observatório das Metrópoles, criamos o Mapa do FAUPOA, que visa qualificar o olhar espacial da presença das hortas na cidade, com cruzamento de informações sobre os diferentes tipos de experiências catalogadas.
Ainda em 21 de julho de 2022 tivemos publicado o Decreto Municipal nº 21.576, que dispõe sobre a implantação de hortas urbanas comunitárias em áreas de parques, praças e terrários da cidade. A princípio, a publicação do decreto num momento em que enfrentamos o trágico retorno do Brasil ao mapa da fome, assinala um reconhecimento da importância que a agricultura urbana pode vir a ter para ações de segurança alimentar. Porém, o decreto não traz nada sobre os diferentes tipos de hortas urbanas que apresentamos em nosso mapa, ignorando a complexidade e a multiplicidade de experiências de agricultura urbana já existentes na cidade. Também centraliza as ações em apenas uma secretaria, evidenciando a dificuldade de o Poder Público praticar a transversalidade interna, aspecto tão comum no ambiente das hortas. Lamentamos, neste processo, a falta de diálogo com os atores que praticam agricultura urbana em Porto Alegre, resultando num regulamento que não atende as necessidades da maioria das experiências coletivas e institucionais de hortas do município.
Por fim, apenas em 08/12/2022, após mais de uma década de trabalho exitoso, contínuo e edificante – que extrapola deveras os seus limites territoriais comunitários, tive a satisfação de estar presente em dia de mutirão na HCLP, para avançar na implantação do sistema de irrigação com coleta de água da chuva, viabilizada, a bem da verdade, por meio de emenda parlamentar municipal impositiva.
Muito gratificante ver este projeto – que apesar da grandeza ainda não possui também sequer energia elétrica instalada, aos poucos vai tornando realidade o sonho antigo de ter água da chuva a disposição, o que vai tornar menos pesada para algumas pessoas – que chamamos de âncoras da horta, a tarefa cotidiana de irrigação, sobrando mais tempo para outras atividades.
Em um futuro não muito distante, sonho com a HCLP ampliando seu escopo e se transformando também num espaço de turismo pedagógico a partir da diversidade alimentar com plantas, integrando uma nova rota de turismo rururbano, com foco socioambiental e cultural. Algo que tem vocação e já pratica informalmente de certo modo.
Por ora, preciso registrar meus sinceros parabéns a todos que lideram, participam e apoiam este trabalho maravilhoso, que a cada dia se consolida ainda mais como uma referência de horta urbana e comunitária no estado do Rio Grande do Sul, contribuindo decisivamente para avançar na organização do seguimento e na criação de políticas públicas dirigidas a esta área.
Antônio Elisandro de Oliveira é agrônomo voluntário na HCLP desde 2011, membro fundador do Fórum Gaúcho de Agricultura Urbana e Periurbana Sustentável e do Fórum de Agricultura Urbana e Periurbana de Porto Alegre (FAUPOA), do qual é coordenador executivo. Participante dos spins Sustentável, Resíduos, Capital Humana e Orgânicos do POA Inquieta.