Em 1992, eu fui realizar meu doutorado na Alemanha e lá conheci uma brasileira que fazia doutorado em computação e que tinha um irmão no Brasil, estudante de graduação na mesma área. Eu escrevia cartas para minha família, que demoravam duas semanas para serem entregues, na melhor das hipóteses, eu recebia uma resposta dentro de um mês. Já essa minha amiga me contava que usava uma tal de internet, gratuitamente, pela qual ela enviava uma mensagem para o irmão pela manhã pedindo a receita de um bolo e à tarde recebia a receita da sua mãe. Eu me sentia humilhado, e achava aquilo maravilhoso. Eu imaginava que eram as universidades que estavam pagando por esse serviço, pois algum custo deveria ter. Nesse período, nas datas especiais eu telefonava para casa com um cronômetro na mão para não passar do tempo, pois era muito caro, e já avisava para o outro lado da linha, para a família ficar em fila e falar bem rapidinho.
Dez anos depois, em 2002, fui fazer um pós-doutorado na região de Boston, nos EUA, e então já podia falar todos os domingos com a minha família, usando a câmera do notebook, conversava calmamente e sem custo algum. Eu fazia isso da minha casa para a casa dos meus pais. Agora não precisava mais pagar ligações telefônicas, tínhamos acesso à câmera e tempo ilimitado para falar, tudo gratuito. Novamente me perguntava, quem está pagando por esse serviço?
Eu comecei a ouvir falar coisas como: “Quando o produto é gratuito, você é produto”. Algumas pessoas diziam que não tinham nada a esconder. Outras estavam tranquilas porque estavam protegendo seus dados. No início dos anos 2000, conheci as plataformas digitais e me pareciam “inofensivas”, elas ofereciam ótimos serviços e eram gratuitas. Nossa! Quando surgiu o Google, foi um encanto! Cada vez mais fui utilizando os serviços de internet, fazendo mais coisas pelo celular e fornecendo mais dados, como todo mundo, afinal, ou fazíamos isso, ou “ficaríamos fora do mundo moderno”.
Recentemente tive acesso ao livro e às palestras de Yanis Varoufakis, um economista e político grego, que foi ministro das finanças da Grécia em 2015. Ele escreveu o livro intitulado “Technofeudalism: What killed Capitalism” (Tecnofeudalismo: o que matou o capitalismo) lançado em 2023. Eu já havia entendido porque os serviços eram “gratuitos”, mas esse livro explica muito bem a relação das plataformas com as empresas tradicionais.
Varoufakis diz que o capitalismo tem como pilares o mercado e o lucro. Ele chama as plataformas de “Capital em Nuvens” (Google, Amazon, TikTok, Facebook, Alibaba etc.). Segundo ele, o Capital em Nuvens foi financiado pelo Banco Central de alguns países, já dominou o capitalismo e transformou os capitalistas em seus vassalos. As grandes empresas, que produzem bens e serviços, se tornaram reféns das plataformas, que não produzem nada e cobram das empresas um percentual significativo para anunciar seus produtos.
Sabe que, há alguns anos, eu levei um choque quando fui a uma loja física e descobri que era mais barato comprar aquele produto pelo site da própria loja, ou seja, a loja estava fazendo concorrência com ela mesma, desvalorizando o seu espaço físico e estimulando a compra virtual. Ali eu entendi que não adiantaria mais uma rede ter lojas espalhadas por todo o país para aumentar suas vendas.
Yanis Varoufakis afirma que os capitalistas continuam extraindo mais valia do trabalho assalariado (mais valia = é o lucro que o trabalhador gera com o seu trabalho para o empregador), mas eles não estão mais no comando como antigamente. Hoje eles trabalham para os donos das plataformas (Capital em Nuvens), por isso Yanis os chama de “vassalos”. E nós, usuários, somos os “servos”, que trabalhamos sem remuneração, alimentando as plataformas com dados. Existem ainda os “proletários da nuvem”, que são trabalhadores assalariados que operam as plataformas. Então, empresários, trabalhadores das plataformas e usuários, somos quem sustenta o Capital em Nuvens, dominado por Zuckerberg, Bezos, Elon Musk e mais meia dúzia de bilionários.
Alguém poderá dizer que uma empresa paga para uma plataforma para anunciar seus produtos por livre espontânea vontade. Não é verdade! As plataformas desenvolveram algoritmos que permitem conhecer melhor os clientes que qualquer rede de lojas. As plataformas são diferentes de tudo que já existiu no capitalismo: elas não produzem nada e praticamente não possuem concorrentes. Elas simplesmente mostram na tela de um celular que o usuário tem na palma da sua mão exatamente o produto que ele deseja, ou que talvez, nem saiba ainda que deseja. Não tem mais uma vendedora chata dizendo que aquela roupa fica bem em você. É você que está louca para comprar aquela roupa e a plataforma é apenas “uma amiguinha” que facilita a compra e permite você atender esse desejo. Em outras palavras, se a fabricante da roupa não pagar para os donos das nuvens, não irá vender. Sabendo disso, os Zuckerbergs das nuvens irão cobrar cada vez mais caro para anunciar esses produtos e serviços e os vassalos terão que pagar.
Durante a pandemia, percebemos que, se não comprássemos, as grandes empresas quebrariam. Agora, Varoufakis está mostrando que, se as empresas capitalistas tradicionais fechassem as portas, as plataformas quebrariam, pois não teriam produtos para ofertar. Veja que, tanto nós consumidores, quanto as empresas tradicionais, temos um poder que não usamos. Precisamos consumir e as empresas precisam produzir, mas se tivéssemos consciência da dominação que estamos sofrendo, poderíamos virar esse jogo. Enquanto nos mantivermos alienados, continuaremos sendo servos e vassalos.
Referências:
- Technofeudalism – livro
- Yanis Varoufakis - Technofeudalism - the vídeo
- Technofeudalism: Explaining to Slavoj Zizek why I think capitalism has evolved into something worse - vídeo
- IN FULL Yanis Varoufakis welcomes us to the age of Technofeudalism | Full interview
- Pedro Romero Marques - Resenha de Technofeudalism: What Killed Capitalism, de Yanis Varoufakis
Foto da Capa: Montagem
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