“Um filho autista, assim como um filho trans, não é moda, tendência ou commodity: são pessoas com enormes dificuldades de aceitação na sociedade e sofrem com os mais variados tipos de preconceitos. Para ambos, ir à escola é um tormento e o mercado de trabalho os repele. Textos como os do colunista Luiz Felipe Pondé ajudam a aprofundar e embasam esse preconceito”. Esta é a voz do meu amigo Marcos Weiss Bliacheris. Pai de um jovem autista, Marcos dá a resposta necessária ao colunista que publicou no dia 28 de agosto, no jornal Folha de São Paulo, o artigo “O diagnóstico de autismo se transformou numa tendência de estilo hype”.
OK! Ele é livre para escrever o que quiser, mas é lamentável o desconhecimento, o descaso, a falta de respeito e de sensibilidade. O momento é propício para lembrar a dissertação de mestrado de Marcos, mais do que nunca um grito de alerta necessário.
Na Dissertação de Mestrado, um Grito de Alerta
“O Movimento Social da Neurodiversidade e a Consciência Política Autista”
No dia 24 de março deste ano participei da banca examinadora de um amigo muito querido. Marcos Weiss Bliacheris terminava o Mestrado Profissional em Ambiente e Sustentabilidade na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul/UERGS, Unidade de São Francisco de Paula, com orientação da professora/doutora Aline Hernandez. Estavam comigo as professoras/doutoras Luciele Nardi Comunnello e Valéria Aydos Rosário. O momento foi de grande emoção porque Marcos sempre me estimulou a participar de eventos sobre acessibilidade e inclusão, a falar e a escrever sobre a minha condição e a condição de tantas outras pessoas que têm uma diferença.
Na dissertação “O Movimento Social da Neurodiversidade e a Consciência Política Autista”, ele deixa claro que o silêncio não protege ninguém. Pelo contrário, angústia, sufoca, aniquila. Sua escrita é um grito de alerta oriundo de um intenso percurso pessoal, familiar, profissional e político. Traz uma reflexão contundente sobre o preconceito, a diferença e a imperfeição que nos torna humanos e possíveis de acertos e erros, seja em relação ao autismo de um filho ou de tantos outros desafios que a vida na diversidade impõe.
No texto, ele volta no tempo. Chega à Segunda Guerra Mundial e ao Holocausto, o genocídio de 06 milhões de judeus provocado pelo nazismo, que seus antepassados viveram. Ao retornar ao século 21, mostra outras formas de discriminação apontando as dificuldades que teve para matricular o filho autista, expulso de muitas escolas pela sua condição. E reconhece a transformação de um pai, que se tornou um defensor da diversidade. Mescla suas origens, memórias, estudos, vivências, leituras para entender a consciência social que desenvolveu e sua ação como ser político, ciente da compreensão necessária do que viveu e vive para seguir.
Recusou rótulos e avançou porque a linha reta imaginada para sua vida já não era mais reta
Marcos procurou profissionais da área da psicologia/psiquiatria e estudou o autismo para entender o filho. Buscou um lugar de fala amparado nas suas origens, posição social, profissional e pessoal. Buscou um diagnóstico, que pode “rotular” ou “liberar”. Recusou os rótulos. E avançou mais ainda porque a linha reta imaginada para sua vida já não era mais reta. Entendeu que ser pai significava abrir mão de um pretenso poder diante de situações mediadas por sentimentos e sensações que desconhecia – sons, cheiros, luzes e a reação das pessoas diante do filho autista. Sua dissertação expressa um ponto de vista a partir de um olhar comprometido com os direitos humanos que encontrou na Academia eco para expandir sua voz e sua luta e, assim, ampliar outros olhares.
Pessoas diferentes são rotuladas e isoladas aleatoriamente. Os autistas vivem “mais julgados do que ajudados”, diz Marcos, referindo-se à solidão da diferença, e cita ativistas do movimento negro como Lélia Gonzalez e Djamila Ribeiro. Ser diferente causa estranhamento e solidão. Soma-se ao silêncio que, por sua vez, se soma à invisibilidade e apaga o indivíduo. Somos a negra, a lésbica, a anã, o gay, aquela que tem síndrome de down, o índio, o cigano, o judeu, o muçulmano e por aí vai. Assim, o filho virou um diagnóstico e a “escola um conto de fadas ao contrário. Vamos com um príncipe e voltamos com um sapo”. Todo comportamento que foge da estreita régua da normalidade é, prioritariamente, visto como inadequado. Foi pela negação que Marcos descobriu seu novo lugar no mundo – o não lugar oferecido pela sociedade aos diferentes – e tornou-se um ativista da diversidade.
O estudo da Neurodiversidade como um movimento social e político ligado à Sustentabilidade me emocionou na dissertação. E logo relacionei com Inclusão e Acessibilidade
As dificuldades físicas, mentais, intelectuais, cognitivas, de comportamento, enfim, nos fazem estrangeiros, sim! E a luta de Marcos para não ser envenenado pelo silêncio e não se censurar em relação à diferença do filho é estimulante. É fundamental encarar a nossa condição, jamais escondê-la. Sempre há uma grande expectativa em relação ao filho que vai nascer. Filhos são pautados pela perfeição e a sua não adequação, que pode fazer explodir o preconceito, ao mesmo tempo abre um universo de possibilidades ao romper com o determinismo e as verdades absolutas. Marcos deixa claro na sua dissertação que a diferença de um filho pede acolhimento. Assim como eu busquei força na arte para encarar a vida fora do ninho familiar. Às vezes, absurdamente estrangeira!
Decifrar esta equação é o desafio não só dos pais que têm filhos diferentes, mas dos filhos que precisam entender o movimento dos pais diante de alguém que, definitivamente, não corresponde ao sonhado/planejado. Pais que precisam descobrir um jeito de se comunicar com seus filhos estrangeiros. Filhos que precisam dessa conexão para viver em um mundo que seja verdadeiramente sustentável.
Como a pequena história contada pelo escritor Eduardo Galeano, em “O Livro dos Abraços”, sobre o menino Diego, levado pelo pai para conhecer o mar. Foi uma longa caminhada. “E foi tanta a imensidão do mar, e tanto o seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: “Me ajuda a olhar!”.
Precisamos todos nos ajudar a olhar!