Uma das experiências fundadoras da nossa subjetividade é aquela que nos ensina a fantasiar.
Imaginemos um bebê recém-nascido agarrado ao seio materno. Esta imagem é talvez a que mais bem representa a experiência de satisfação. Os dois personagens que compõem esta cena estão plenamente satisfeitos: o bebê, por ter suas necessidade saciadas e a mãe, por permitir esta saciedade ao seu filho.
Mas este cenário idílico não dura para sempre. Haverá um momento em que a criança sentirá fome, mas a mãe não estará ali para dar de mamar. Esta é a experiência que serve de modelo para todas as futuras situações em que nos sentimos frustrados: esperávamos que alguém estivesse ali para nos saciar, mas a satisfação não vem.
Entretanto, a frustração é essencial, ela nos ensina desde cedo que não estamos tão indefesos frente à falta. Quando este mesmo bebê não tem a sua fome resolvida, só resta poder imaginar como seria esta satisfação. Ou seja, é só quando não temos algo que podemos fantasiar, sonhar, antecipar. Quase como uma vingança: se não tenho agora o que quero, pelo menos posso imaginar como seria.
Mais ainda: com o tempo, nós aprendemos até mesmo a nos satisfazermos com a própria fantasia. É o que acontece, por exemplo, quando já estamos com a viagem de férias marcada, mas a data ainda está um pouco distante. Ficamos imaginando como será caminhar pelas ruas da cidade a que vamos, ou qual será a sensação da água do mar no qual nos banharemos. Há todo um prazer em “curtir” esta ficção antecipatória.
Gostaria que o leitor percebesse, portanto, o quanto a frustração tem relação com a construção do futuro. É na ausência que o porvir vai ganhando forma. O que muitas vezes, claro, também pode ser um tanto arriscado: de tanto imaginarmos o prazer vindouro, podemos idealizá-lo a ponto de ele nunca ser suficiente para matar a nossa fome.
De toda forma, a frustração é condição para imaginarmos o amanhã. Quando estamos plenamente satisfeitos, só o presente importa, não ansiamos por mudança.
Sei que está banalizada a ideia de que as gerações mais novas não conseguem lidar com frustrações, mas arrisco a dizer que, infelizmente, desta vez o senso comum tem certa razão. Não creio, entretanto, que isso ocorra devido a alguma fragilidade moral ou fraqueza psíquica, como querem os saudosistas e os ressentidos. A nossa intolerância cada vez mais acentuada à frustração vem sendo construída há algum tempo e afeta a todos nós, não só os mais jovens.
Dentro da lógica socioeconômica em que vivemos, somos mais e mais vistos como consumidores, e não como cidadãos. E isto é crucial: um consumidor estabelece uma relação individualizada com o mundo, com um mundo que lhe deve algo, aliás – como uma mãe que deveria estar ali para saciar a fome do bebê. Ser um cidadão, por outro lado, tem a ver com reconhecer-se como parte ativa de um todo, de uma coletividade. O consumidor tem pesadelos com a escassez de um produto a que supõe ter direito; um cidadão entende a si mesmo como peça-chave na produção de um futuro compartilhado. O consumidor se insurge contra a insatisfação com um produto no presente. O cidadão, contra a injustiça de um futuro que repita as violências do passado.
Estamos vendo as consequências disto a olhos nus nos últimos tempos. No âmbito mais amplo, a nossa desimplicação estrutural com relação às questões climáticas explicita o quanto sofremos uma dificuldade enorme de imaginarmos um mundo que poderá nos faltar, que teríamos que, de alguma forma, preservar e cuidar. No registro mais íntimo, esta inflação do nosso lugar de consumidores fica bastante aparente na relação on demand que acabamos criando com a cultura e com os outros.
Em uma época em que a satisfação está à distância de um clique – bastam alguns minutos para encomendar o livro tão desejado ou alguns swipes de dedo para encontrar o amor da vida -, qual o lugar que a frustração poderia ocupar a não ser o de algo terrível que precisa ser evitado a qualquer preço, literalmente?
Mas veja bem, leitor, realmente não sou assim tão crítico às facilidades que a tecnologia trouxe. É fantástico que possamos ouvir a música que quisermos na hora em que tivermos vontade, ou que o filme que tanto nos interessa esteja disponível em poucos minutos. O problema é que esta forma de relação com o mundo tem seus efeitos colaterais, e talvez só agora estejamos vivenciando isso de forma mais ostensiva.
É preocupante quando um adolescente conta que seu sonho de vida é ser famoso, sem conseguir dizer como chegaria a tal fama. Só ser famoso. Ponto. Tendemos a aproximar a fama da satisfação: a celebridade parece sempre saciada, ostentando obsessivamente o amor de um mundo que venera a sua inutilidade.
Também deveria causar certo espanto quando psicólogos e médicos gastam mais tempo elaborando posts para suas redes sociais do que estudando para clinicar de forma mais consistente. Ainda me causa espanto quando alguém que recém abriu um consultório ficar chateado por não estar com a famosa “agenda cheia”, como se uma postagem ou outra pudesse substituir anos de estudo e trabalho rigoroso. Perde-se aí a noção de que a consolidação de um ofício se dá por acumulação, o que implica suportar e lidar com as frustrações cotidianas.
Quando se imagina que o melhor destino é viralizar nas redes, quando supomos que o mundo nos deve satisfação sob demanda, vamos nos afastando daquela que talvez seja a mais valiosa capacidade humana, a de fantasiar um mundo melhor.
Drástico? Pessimista? Pode ser que sim, mas se não levarmos a sério o quanto o nosso estilo de vida on demand tem produzido efeitos no mundo, o quanto somos infantilizados por nossa forma de viver, talvez não haverá mais comportas para fechar na próxima cheia ou talvez tenhamos todos que nos contentar em fazer terapia com um algoritmo acéfalo que não se importa conosco.
A ilusão de que nada nos falta pode justamente ser o que vai nos privar de tudo.
Foto da Capa: Carlos Santiago / Pexels