Os ideais são uma faca de dois gumes.
Por um lado, é impossível ter vontade de levantar da cama quando não conseguimos imaginar um futuro. Ter um caminho à frente e um lugar aonde se quer chegar permite que a gente dê sentido para a nossa vida, nos ajudando também a suportar os pequenos e grandes incômodos cotidianos.
Para que as frustrações da rotina não nos paralisem, precisamos poder supor que lidar com elas vale a pena.
Aquela disciplina da faculdade é chata, o professor é enfadonho? Ok, tudo bem, no final do curso vai ter valido a pena, mesmo que na hora pareça tudo tão cansativo. Estou trabalhando demais, talvez bem mais do que eu gostaria? Se o meu intuito for o de “dar um gás” agora pra no futuro poder ter uma vida mais tranquila, não fica assim tão difícil dar conta de uma agenda tão cheia.
Quando o ideal ocupa esse lugar de horizonte que instiga a caminhar, o futuro se torna presente, a gente já vive um pouquinho deste futuro onde as coisas estarão melhores. Quando o ideal convida ao movimento, nós temos um teaser dos próximos capítulos – que supomos que vão ser melhores do que a história a que assistimos agora.
Uma cena bastante ilustrativa deste lugar do ideal é o de uma criança aprendendo a andar. Para que consigamos dar os primeiros passos, é preciso que alguém esteja agachado na outra ponta, nos chamando: “Vem, filho, vem até aqui”. É só quando estamos sustentados pelo desejo de um outro que nós nos erguemos e, ainda que trôpegos, conseguimos dar um passo à frente. Depois outro. E outro.
Curiosamente, esta mesma cena nos ajuda a pensar o outro lado do ideal.
Porque às vezes os ideais não surgem como caminhos possíveis, mas como obrigações. Nestes momentos, o ponto de chegada não nos convoca a seguir adiante, mas se coloca como um impedimento. No caso da cena de que falei acima, isso pode ocorrer, por exemplo, quando alguém percebe que só consegue caminhar quando outra pessoa está chamando, mesmo que talvez não quisesse fazer isso naquele momento. Com o tempo, a criança precisa aprender a caminhar mesmo que ninguém esteja do outro lado, esperando. Precisa caminhar porque quer caminhar.
Não são poucos os pacientes que falam disso: chegam a um certo ponto de suas vidas que questionam os motivos de fazerem as escolhas que estão fazendo, que passam a se perguntar inclusive porque, muitas vezes, parece que a vida não está indo adiante. A explicação costuma ser muito parecida: estes pacientes acabam chegando a um ponto em que se perguntam se aquele lugar de chegada foi realmente construído por eles ou se só estão respondendo ao que foi desejado por eles. Estou caminhando porque alguém me chama ou porque eu quero caminhar?
Neste casos, encontramos muitas vezes pessoas muito inibidas, que suspendem as suas vidas como uma forma de dizer que aquele não era o caminho que desejavam, que precisam se interrogar pelo próprio desejo para, aí sim, ter pernas para retomar a viagem.
Uma outra forma de o ideal ser paralisante acontece nos casos da procrastinação. Não raro, o que está por trás da dificuldade de fazer algo é uma suposição de que tudo precisa ficar perfeito, de que o texto só vale a pena ser escrito se for virar uma obra-prima, ou que a viagem só vai ter sentido se trouxer a maior satisfação possível, se todos os museus forem visitados, todos os restaurante frequentados, todas as fotos tiradas.
Quase todo procrastinador também precisa dar conta de uma pontinha de seu próprio narcisismo. Porque imaginar que algo só possa ser realizado se o resultado for perfeito também significa supor que alguém consegue realizar o ideal. Nesta situação há uma certa superestimação de si próprio, o que impede que mesmo o primeiro passo se torne possível.
De toda forma, com relação aos ideais, melhor que eles existam, mesmo que se coloquem como uma obrigação. No pior dos casos, se tratará de uma questão de suportar a própria finitude e imperfeição para poder seguir caminho. Já em um mundo sem ideais, o próprio caminho se desfaz e a viagem toda perde o sentido.
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