Eu estou cansada do inverno. Sim, eu sei, ele recém começou, no dia 21 de junho. Há semanas a temperatura cai no Rio Grande do Sul. Eu sinto os meus músculos tensos e enrijecidos, sob a pressão dos termômetros em queda. Cada dia cinzento, cada vento gélido que penetra até os ossos, cada rajada na minha janela, é um atravessamento do frio, da umidade, da chuva. Penetrante em mim e dilacerante para tantos outros.
Sei do meu cansaço, do quão ínfimo ele é. Basta colocá-lo frente a frente com o sofrimento de pessoas sem o privilégio de um abrigo adequado, de roupas aquecidas e adequadas para se protegerem do frio cortante, para ele ser motivo de chacota. O frio do outro é imponente, é maior, é gritante, mesmo sem voz. O frio do outro é a literal desproteção.
Falo sobre as pessoas moradoras do município de Caraá, no Litoral Norte, no enfrentamento do ciclone extratropical, falo das pessoas – são 16 mortes até hoje – que não poderão contar essa história porque não sobreviveram. A força da natureza destruiu moradias, arrastou sonhos e ceifou vidas. O frio é implacável para todos os homens e mulheres, em todas as circunstâncias. Mas há dores maiores.
Falo do caso de comunidades carentes, onde a precariedade das moradias e das condições de vida se torna ainda mais evidente durante o inverno. Pessoas que vivem em casas mal isoladas, com infiltrações e pouca ou nenhuma proteção. O frio que adentra seus lares traz doenças, agrava enfermidades preexistentes e coloca em risco a saúde.
Falo também das pessoas sem-teto a enfrentar as noites geladas nas ruas, tentando encontrar um local minimamente aquecido para repousar. Os invisíveis que fazer da calçada o seu lar, sem nem sequer interromper o caminhar porque viraram paisagem, todos os dias estão ali para quem vai e para quem vem.
Neste começo de estação de 2023 o desencanto predomina. Como olhar para o sofrimento do outro e seguir? Eu sei, há caminhos. Nem tudo é dor e nem todos sentem a frieza do frio. Por certo, a estação pode refletir contemplação e descanso, fogueira, comidas quentes, calor humano. Sim, o inverno pode ser romântico, a neve pode ser divertida, o vinho aquecer o coração e a alma.
Neste final de semana do ciclone, o meu cansaço encontrou um caminho e ele se chama solidariedade. Enquanto o vento batia forte no meu quarto, eu abria uma caixa vazia e começava a encher de roupas quentes. Quanto mais olhava para o lado, mais peças eu decidia encaminhar a quem mais precisa. É quase nada, mas a transformação é de pouco em pouco. A doação para amenizar a dor do outro pode ser de coisas, de dinheiro ou de tempo. Não há regra, há entrega para o outro, para o próximo.
O meu cansaço pode se chamar culpa, admito. Ajudar as pessoas em necessidade extrema é uma forma de alívio. É a minha contribuição para tornar o mundo um lugar melhor. Penso neste exercício de reconhecer os meus próprios privilégios e estender a mão como uma prática de gratidão em relação à própria vida. Reconhecer a sorte de ser quem eu sou também me motiva a olhar e ajudar o outro.
O meu cansaço também pode ser chamar empatia, talvez. Me colocar no lugar do outro em sofrimento é também sentir a dor e os efeitos dela no organismo, na motivação, na percepção de mundo.
O meu cansaço é impotência diante do frio do outro – e do meu. A verdade é que não somos incansáveis e nem devemos ser. Diante do cansaço é preciso descansar. É no repouso onde carregamos energia criativa para somar mais potência, individual, social, coletiva, em rede para transformar a falta de força em melhores condições para reagir. Cansar, descansar, reagir e repetir. O inverno está só começando.