Contrariando a nobreza europeia que seu nome carregava, Fausto Wolff – nascido Faustin von Wolffenbüttel – optou pela versão reduzida e preferiu ser plebeu na vida. Como definiu Millôr Fernandes, parceiro de Pasquim, “Fausto Wolff, em toda parte, procurou e conviveu com os da sua estirpe – escritores, cineastas, poetas e grã-finas. E com os da sua laia – bêbados, putas e brigões”. Seu perfil era o de um homem de excessos. Mais de 1m90cm, voz tonitruante, capacidade infinita para tomar chopes e steinhagers. Tantos exageros cobraram seus preços e impediram-no de em julho próximo comemorar 83 anos de brilhante indignação.
Morto há quase 15 anos, em setembro de 2008, então com 68 anos, Fausto Wolff é pouco lembrado hoje em dia, tornando-se quase numa criatura que o mundo esqueceu. Foi enterrado com certa pompa, no Cemitério do Caju, no Rio. Sobre o caixão podiam ser vistas uma camiseta da Banda de Ipanema, entidade que ele chegou a ser um dos padrinhos, e duas bandeiras das suas devoções políticas: o PCB e o PDT. Ao fundo, o som da Internacional, de Carinhoso e de Cidade Maravilhosa, executados por dois integrantes da Banda de Ipanema. Porém quem se dispuser a ir atrás de suas obras enfrentará dificuldades. Seus livros não são fáceis de encontrar em muitas livrarias. Em sebos, o problema diminui, ainda assim é incapaz de transformar o autor num nome descoberto e reconhecido pelas novas gerações.
Estive com ele pessoalmente por duas vezes, no final dos anos 90 e em meados da década seguinte. Ambos encontros estimulados por tarefas profissionais que ao longo da conversa se converteram em papos pessoais. Fausto já era uma admiração jornalística antiga, valorizada ainda pela amizade herdada: ele foi colega de redação de meus pais. Já no primeiro encontro, ele autointitulou-se meu “tio”, me deixando envaidecido com o novo “parentesco” e me permitindo uma intimidade maior na abordagem dos assuntos. A conversa, obviamente, foi entre chopes. Não consegui nem de perto acompanhar sua insaciável performance, porém reparei que quantos mais chopes eram vertidos mais lúcido ele ficava.
Fausto Wolff sempre demonstrou talento para se inventar. Primeiro no Rio Grande do Sul, onde nasceu, em Santo Ângelo, e começou sua carreira jornalística de mais de seis décadas. Depois, ainda com menos de 20 anos, no Rio de Janeiro, cidade onde se tornou uma das maiores referências da boêmia e da inteligência ipanemense. No Rio, fez sucesso também como homem da noite e conquistador. Pelo seu apartamento na Rua Saint-Roman passaram algumas das mulheres mais desejadas de sua época, aí incluída Tônia Carrero em seu esplendor. Na década de 60, o momento profissional era grandioso, com ele à frente de três colunas. Escrevia sobre TV no Jornal do Brasil (sendo pioneiro a tratar o tema com a seriedade devida), teatro na Tribuna da Imprensa e política no Diário da Noite. Suas opiniões se amplificavam mais ainda através do Jornal de Vanguarda – telejornal comandado pelo produtor Fernando Barbosa Lima, que, coincidentemente, morreu no mesmo dia que Fausto. Tanta exposição – e de maneira tão vigorosa e veemente – chamou a atenção da censura e, aos 28 anos, no malfadado 1968 do AI-5, Fausto Wolff se mandou para Europa.
Passou dez anos por lá, dividindo-se entre Copenhague, na Dinamarca, e Nápoles, na Itália. Nos dois locais desempenhou a função de professor de Literatura Brasileira, além de atuar como diretor teatral. Neste período, esteve ainda em Saigon, então capital do Vietnã do Sul, cobrindo a guerra do Vietnã para uma agência de notícias.
Voltou ao país em 1978, quase que na mesma leva de tantos brasileiros que retornavam com a anistia. “Ao retornar, verifiquei que a liberdade adquirida na Europa não me permitiria trabalhar com a consciência tranquila na grande imprensa, sócia do poder, e fui ficando no Pasquim”, lembrou ele na nossa segunda entrevista, em 2005. Fora das redações, aproximou-se da política. Apoiou a vitoriosa (e surpreendente) campanha de Leonel Brizola ao governo do Rio em 1982 e, três anos depois, comandando uma turma de 60 estagiários, produziu um dos mais completos retratos sociológicos de uma metrópole. A partir de depoimentos de operários, travestis, policiais, bancários, camelôs e tantos outros personagens que compõem a fauna urbana, Fausto Wolff organizou o livro Rio de Janeiro: Um retrato – A Cidade Contada por seus Habitantes. No ano seguinte, tentaria, novamente sem sucesso, uma vaga na Assembleia Constituinte, concorrendo a deputado federal pelo PDT do Rio.
Longe do dia a dia do jornalismo – neste milênio suas raras aparições seriam na extinta revista Bundas e como colunista do já agonizante Jornal do Brasil – Fausto Wolff pôde se dedicar aos livros. E a literatura saiu ganhando. Era um autor criativo, incisivo, versátil, engraçado, prolífico e mordaz. Duvida? Confira em obras como O Acrobata Pede Desculpas e Cai (1997), O Nome de Deus (1999) e A Imprensa Livre de Fausto Wolff (2004) – que ele brincava que o título poderia ser lido por qualquer ângulo. Dizia ser muito influenciado por diversos escritores e costumava citá-los com frequência em textos, entrevistas e conversas. Admirava (e conhecia) a obra de Dante, Maquiavel, Cervantes, Shakespeare, Molière, Voltaire, Tolstoi, Dostoiévski, Nietzsche e Kafka. No Brasil, se dizia leitor (e às vezes amigo de alguns) como Erico Veríssimo, Fernando Sabino, Nelson Werneck Sodré, Campos de Carvalho, Vinícius de Moraes, Drummond, Quintana e Nelson Rodrigues.
Muitos fazem parte – direta ou indiretamente – das suas duas obras mais importantes, que permitem ao leitor interessado nos textos do jornalista a busca de uma experiência ainda mais transcendente. A primeira obra, À Mão Esquerda, é uma aventura quase memorialística lançada em 1996 que relata o ajuste de contas do escritor com seu passado e de sua família. Um depoimento regado a hectolitros de uísque e que revirava boa parte das aventuras jornalísticas, teatrais, políticas e sexuais do autor. À Mão Esquerda foi elogiado por todo mundo, de Carlos Heitor Cony a Sérgio Augusto, de Millôr a Ziraldo. Apenas Ivan Lessa – talvez por causa de antigas brigas – resolveu esculhambar o livro em uma resenha na revista Veja. Nove anos após À Mão Esquerda, Fausto Wolff fez uma espécie de sequência com A Milésima Segunda Noite, que ele definia como a rica experiência de mais de cinco décadas como jornalista e, principalmente, como uma coletânea de histórias sobre o caráter do homem passivo e a necessidade de transformá-lo em uma pessoa com caráter crítico e revolucionário. O autor ainda avisou: era preciso ter em mente que tudo ali foi interpretado “graças à minha ignorância, a centenas de garrafas de uísque e a falta de perspectiva para meu objetivo literário. É a história do mundo contada para sobreviventes”.
Sabendo que não era fácil ser escritor num país que ninguém lê, Fausto Wolff dizia que para exercer seu ofício era preciso ter caráter e honestidade, saber absorver as experiências e, finalmente, passar isso tudo para o papel com um estilo. Poderia parecer um nefelibata. Era um realista que sabia que a verdade é o alicerce da ficção e só a ficção coloca a realidade nos eixos.