Reclamar da impunidade é um hábito brasileiro tão recorrente quanto reclamar da escalação do seu time. E, assim como no caso do futebol, que na última década meio que providenciou, de modo surpreendente, o molde e o espírito de muitas das discussões políticas do país, também essa queixa constante a respeito da impunidade pode ter cores distintas de acordo com o espectro ideológico dos envolvidos. Falando mais claro: como acontece com praticamente tudo em um país da periferia do capitalismo tardio, até a impunidade tem um recorte de classe no Brasil.
Quem se queixa seguidamente da impunidade costuma ter alguns alvos bem específicos em mente. Criminosos comuns, para começo de conversa, do punguista pé-de-chinelo que alivia transeuntes de seus pertences em espaços com grande concentração de gente até o autor de um latrocínio em uma parada de ônibus. O discurso automático associado a esse tipo de criminalidade costuma ser o mesmo, repetido tanto por agentes públicos e pelo cidadão comum quanto pela imprensa, que tem um viés notoriamente policialesco em sua forma de cobrir a segurança pública: “há muitas formas de um criminoso burlar a lei e seguir praticante seus delitos”, “a polícia prende e o Judiciário solta”, “há muitos direitos para esse tipo de vagabundo” e etc., etc. A imprensa, por exemplo, costuma ser bastante incisiva em apontar que um determinado autor de algum crime muito rumoroso já foi em momento anterior preso por alguma outra coisa, mas estava solto por não haver sido ainda processado e condenado.
Não quero com isso diminuir a questão, a segurança pública é um problema que a esquerda notoriamente tem dificuldade de lidar quando está no poder. Há sim a necessidade de mudar a mentalidade agressiva das polícias, muitas vezes amparado por um corporativismo rampante. Uma discussão que precisa ser feita a sério é a desmilitarização da polícia, por exemplo. E é necessário impor algumas restrições legais e gerais à forma como a polícia em ação muitas vezes age como se estivesse inventando as leis ali mesmo na hora, para justificar a sua ação, e não agindo para fazer cumprir uma lei prévia (não estou sequer inventando isso. Eu literalmente vi isso acontecer pelo menos um par de vezes, em que, instados a justificar a legalidade de alguma prisão arbitraria por uma multidão impaciente com o que havia visto, policiais simplesmente jogaram a esmo um artigo qualquer do Código Penal).
A questão é que essa é uma pauta impopular com parte da sociedade mais conservadora (que ganhou uma cara e uma voz considerável depois da ascensão da extrema direita no Brasil). E embora haja uma série de estudos sobre como essas estruturas devem de algum modo mudar antes que a própria polícia mude, você vai entrar em apuros para explicar para alguém que acabou de ser assaltado na parada de ônibus que esse é um processo longo e ainda vai demorar para dar resultados, ou mesmo para minimamente explicar qual diabos é o seu objetivo final com as mudanças que você deveria implantar (e o PT, particularmente, tem até hoje uma dificuldade crônica nessa área, mas a má comunicação do partido não é algo que começou com Lula).
Logo, sim, a segurança pública é algo que preocupa muito mais do que o eventual burguês safado metafórico que é usado como espantalho em reuniões de DCE, mas sempre me parece que a insistência de determinados espectros políticos e da própria imprensa na “liberalidade” do sistema que mantém “criminosos soltos” (quando as taxas de encarceramento no país têm crescido continuamente na última década) é usada para desviar o foco e fazer você não se dar conta de que há sempre um recorte econômico e demográfico na “impunidade” escolhida como alvo das críticas. E elas nunca, jamais, recaem naquilo que antigamente chamávamos de “crimes do colarinho branco”, uma expressão que ela própria parece ter desaparecido do léxico comum, num claro indício de uma mentalidade em expansão no Brasil, a do tesão pelo mercado mesmo no cara que já estourou o limite do PIX e ainda tem boleto para pagar.
A imprensa pode vir a ter um surto ao descobrir que um assaltante a banco preso em flagrante já foi preso em flagrante outras duas vezes antes. Mas a recorrência de irresponsabilidades por parte de grandes empresas não parece engatilhar o mesmo tipo de trabalho em profundidade. A impunidade que muitos se queixam no Brasil parece não ser uma questão para muitos quando se fala também não de crimes, mas de responsabilização por negligências variadas, muitas vezes com os mesmos danos e efeitos nocivos que muito crime voluntário. Parece haver menos gente disposta a pedir a cabeça de quem faz o mal por muquiranagem.
Um caso mais recente foi o show da Taylor Swift, por exemplo. Realizado no auge da pior onda de calor que o Brasil do Sudeste para cima vem enfrentando em décadas. A artista seguiu adiante com o show sem ver problema – imagino que pensa que os subumanos daqui dos trópicos já estão acostumados a passar mal com o calor, então não faria diferença. A empresa responsável pela organização (e que anunciou um lucro monstro neste ano só com os ingressos em pré-venda para esse show) tapou com placas de metal todos os pontos de circulação de ar possível, proibiu a entrada de garrafas de água compradas lá fora para poder lucrar com a venda de uma garrafa a oito pilas (e depois a dez). Transformou o estádio em uma daquelas panelas japonesas para fazer Yakisoba. E o resultado não foram apenas muitas pessoas passando mal, o que já seria um absurdo, mas a morte de uma jovem estudante de psicologia, Ana Benevides, que viajou do Mato Grosso para o Rio para ver a artista.
A mesma empresa, aliás, já foi flagrada este ano mesmo, às vésperas de um festival gigante como o Lollapalooza, mantendo trabalhadores (curiosamente, os responsáveis pela venda e manutenção de bebidas) em condições degradantes e em situação análoga à escravidão (o pessoal dormia no próprio local do evento, em uma tenda, em “camas” feitas de pedaços de papelão. Fazia jornadas de 12 horas sem pagamento de adicionais). A ação para que a empresa pague indenização por danos individuais e coletivos ainda está correndo. Quer-se também que a empresa seja inscrita na chamada “lista suja” do trabalho escravo, que põe um selo na testa de empresas negligentes com seus processos de contratação ou pura e simplesmente abusivas. Curiosamente, nosso presidente anterior, aquele cujo nome não deve ser mencionado nunca mais se tudo der certo, era um crítico aberto da lista suja e dificultou em muito durante sua gestão o acesso a dados dos autos de infração das empresas autuadas por trabalho análogo à escravidão (e sem surpresa nenhuma, havia empresas da lista entre os doadores de campanha do ex-presidente.
Qualquer pincelada no noticiário dos últimos anos mostra condutas parecidas tomadas por empresas que decidiram navegar perigosamente à margem das determinações legais ou do mero bom senso em troca de mais lucros. Está lá Brumadinho (foto da capa), varrida do mapa em janeiro de 2019 com o rompimento da barragem de uma das minas da empresa Vale. O resultado foram toneladas de minério espalhadas pela bacia do Rio Paraopeba, num desastre ambientais de proporções cataclísmicas, e cerca de 270 pessoas mortas – algumas delas seguem desaparecidas até hoje. Embora o MP de Minas Gerais tenha instruído um processo criminal contra quase duas dezenas de réus, boa parte do tempo desde então foi gasto em um excruciante processo de competência sobre quem devia ou não julgar o caso. A Justiça de MG decidiu que o caso não era da competência estadual e o julgamento de foi para a esfera federal por decisão do STF, no final do ano passado. Na teoria, é uma hipótese pior para os réus, mas na prática a defesa ganha tempo – tanto é assim que, depois da federalização, não se tem ainda data marcada para o julgamento. E, o mais importante: ninguém foi preso.
Ninguém vai ser preso também na sequência da falência das Americanas. Aliás, uma outra empresa, que costuma ostentar seu nome orgulhosamente em um dos projetos culturais mais “badalados” do Estado, na prática afundou boa parte da cidade de Maceió pela sua extração desenfreada de sal-gema na região da Lagoa Mundaú, na capital alagoana.
O caso se arrasta desde 2018, quando, pelo que afirmam estudos conduzidos pelo Serviço Geológico do Brasil (SGB/CPRM), o desabamento de uma mina abandonada e vedada abalou um dos bairros mais tradicionais da cidade, o Pinheiro. Os estragos, desde então, se estenderam a outras localidades à margem da lagoa, como os bairros Mutange e Bom Parto. A empresa já fez um acordo para repassar uma bufunfa à prefeitura. Mas não parece ter havido qualquer outra punição além dessa. Se alguém levantar a ideia de que talvez, só talvez, alguém devesse ter ido para a cadeia por afundar um terço de uma capital de Estado, logo aparecerão os defensores do livre capital para apontar que você deveria traçar fronteiras nesse pensamento.
Você não vai ver os mesmos políticos interessados na diminuição da maioridade penal, na construção de mais presídios, na diminuição dos recursos legais na lei processual, no encarceramento em massa, se pronunciar a favor de mais prisões de gente como os CEO ou proprietários de empresas como essas. E não estou aqui querendo que eles façam nada diferente, eu quero é que NÓS, os que não ganhamos nada com isso, acordemos para essa verdade.
O Capitalismo é um sistema injusto. Mas, em teoria, é um sistema honesto. Honesto porque já no próprio nome diz o que realmente é considerado importante em sua vigência: o Capital. Não as pessoas. Não a sociedade. Não a inovação (essa é ótima). O Capital. O dinheiro, o Money, a bufunfa, o faz-me-rir, o vil metal, é isso o que vale, ainda mais hoje que o Capital tem capacidade de se tornar independente de qualquer objeto concreto cujo valor seria negociado em outros tempos.
O problema são sempre seus defensores e apologetas, que precisam fazer um malabarismo retórico para tentar convencer que o capitalismo selvagem é uma espécie de Jardim do Éden antes da perversão pela serpente estatista, em vez da selva com suas leis baseadas na força e na indiferença diante do sofrimento dos mais fracos.