A arte pode e, em muitos casos, precisa ter técnica. Mas dos acordes aos passos; dos textos às construções faraônicas, o que faz da obra de arte, arte, é o artista. Sua habilidade tem impacto; seu estudo, consequência; seu cuidado, fineza. Agora, o que dá significado ao resultado de todo suor e dedicação é a intenção. É o que a pessoa quer dizer, consciente ou inconscientemente, que dá razão à criação.
Mesmo outros animais, que desenham, cantam e dançam, fazem isso com um objetivo. Geralmente é o acasalamento, mas pode ser a caça ou a proteção. Sem essa intenção, instintiva e natural, essa ação não teria sentido e, na maioria das vezes, sequer existiria. Por sua consciência, raciocínio e vida social, o ser humano produz arte com simbolismo, como um canal de expressão e sintonia com algo ou alguém.
A questão é que o sentimento do artista contamina a obra e se sobrepõe à estética ou técnica. A verdade é que esse contágio vai além da arte e está presente em ações simples do dia a dia, como o porquê de fazermos uma atividade voluntária, uma gentileza ou uma grosseria. Uma doação com objetivo de gerar mídia, por maior que seja o valor, pode ser sentida por quem recebe (que precisa e aceita), mas vai se lembrar e valorizar muito mais o café com prosa e o abraço de quem trouxe um bolo de fubá feito em casa. Todas as nossas escolhas cotidianas são medidas pelo nosso objetivo, pelo que realmente queremos.
Mas a arte, André!
O distanciamento entre o emissor (artista) e o receptor (público) gera um ruído enorme nessa troca. Como saber o que está por trás da beleza e do encanto. Isso leva tempo e devemos sempre estar prontos para descobrir que o que entendemos não foi exatamente o que nos disseram. E o que vale, na arte, é o que nos disseram. Há que se distanciar e, na linguagem atual, cancelar a arte mal-intencionada. Fora casos mais extremos, onde uma reação é necessária, sugiro deixar de lado e ignorar.
Tenho intimidade com a música, onde sou o que chamam de roqueiro. Desde a infância, muitas batidas me incentivaram e emocionaram, no afã de me sentir entendido e partícipe de tribos sociais. Mas, não raro, descubro que ídolos que embalaram minha vida têm opiniões totalmente antagônicas às minhas; defendem ou simpatizam com ideais que desprezo. Não tive como perceber isso à época, mas no instante em que tomo ciência desse disparate, nunca mais consigo sentir o que sentia ao ouvir o mesmo som. Ouço a intenção do artista, sua alma incompatível com a minha. É de alma que a arte é feita, por meio daquela técnica eventualmente necessária.
Filmes cujos diretores não valem nada. Pintores preconceituosos. Até esportistas, biltres. A verdade é que nunca se deve negar o produto que está por trás da vitrine. Eu, nem em espaços religiosos, exemplos que arquiteturas milenares, góticas ou o que for, consigo abstrair. Não ser religioso ajuda, mas a dor de quem sofreu por pensar diferente de quem construiu aquilo está mais presente para mim do que a bondade vendida. Não é negar a técnica ou a estética, mas é entender a história.
Os especialistas dizem que Hitler, o líder nazista, era um pintor medíocre. Se fosse um grande artista, teria espaço para uma exposição na ONU, por exemplo? Espero que não, mas não ponho minha mão no fogo por humanos, tão sagazes em relativizar. O artista que separa o que sente do que cria, não cria, só reproduz.
Vou usar uma história de música para mostrar como isso acontece vindo do artista. Tim Maia foi um artista fora do esquadro padrão. Uma vida repleta de sensibilidade que levou ao sofrimento e ao abuso do corpo por entorpecentes diversos. Houve, no entanto, um momento em que o cantor entrou para uma seita, largou as drogas e gravou um álbum chamado Universo em Desencanto, todo com referência aos ensinamentos que ele abraçou. Toda a banda dele na época teve de aderir e as músicas tinham a temática da seita. O resultado foi uma obra-prima, onde tanto quem gosta quanto quem entende de música é unânime em declarar aquele ser o melhor momento do artista carioca.
Como a fumaça sobe e o tempo passa, Tim Maia largou a seita e, para encerrar o ciclo, recolheu e destruiu todos os discos, proibiu a reprodução e desencorajou regravações. Quem lembra do artista sabe que era um perfeccionista, numa busca incessante pela qualidade de tudo que fazia. Em ele sendo assim, é difícil acreditar que ele também não via aquela gravação como a melhor que já tinha feito. Então, pensando aqui, qual é o único motivo para ela acabar com sua existência? A intenção. O que Tim Maia disse naquele disco não era ele, não era sua alma cantando, mas a reprodução da voz de outra coisa. Hoje acho um desrespeito à memória de Tim Maia esse álbum ter sido lançado e as músicas serem reproduzidas.
O caso é que valorizamos o que nos cativa e agrega. Uma das obras mais importantes que tive em casa foi uma garrafa plástica derretida e colorida, comprada numa sinaleira, feita por crianças que queriam juntar dinheiro para ajudar outras crianças. A beleza que isso impõe a uma criação não tem preço e nem técnica que substitua.
Concluo que não acho que a obra seja maior que o artista. Se é consequência dele, virá sempre depois. Temos criações incríveis feitas por gente torpe. Em nome do deleite e do prazer, tudo bem entender isso. Mas não devemos divulgar, comprar, usar como referência algo que nasceu da má, ou mesmo duvidosa intenção.
A graça da vida é vibrar com o que nos faz bem.
André Furtado é, por origem, jornalista; por prática, comunicador, de várias formas e meios. Na vida, curioso; nos Irmãos Rocha!, guitarrista. No POA Inquieta, articulador do Spin Música.
Todos os textos dos membros do POA Inquieta estão AQUI.
Foto da Capa: Acervo do Autor