NOTA INTRODUTÓRIA: Para situar leitores que não tenham acompanhado as últimas duas colunas: com este conto, encerramos hoje a publicação de uma série de histórias de terror ao longo do mês de outubro. Analisando o projeto em retrospecto, talvez este conto aqui devesse ter saído no dia 12, Dia das Crianças, providenciando um twist cruel e macabro à data, mas eu não pensei nisso na época, então azar. Se vocês curtiram essa experiência de ter ficção neste espaço em vez das minhas opiniões furadas o tempo todo, deixem seus comentários.
Muita coisa irritou Luciano na mudança da família para o bairro novo: o condomínio de paredes rachadas, grades enferrujadas no portão do pátio e o corredor de blocos cinzentos, enfileirados lado a lado. O apartamento era menor que o anterior, e enquanto a mãe e o pai dormiam em um dos quartos, ele e os dois irmãos ficavam no outro, no beliche que estalava a intervalos com o peso dos menores dividindo a cama de cima. A mãe esperava mais um filho para o final do ano, e talvez ele devesse achar isso legal, mas não parava de pensar que esse era o irmão que terminaria por dividir com ele a cama de baixo, privando-o de seu frágil privilégio de primogênito.
Tiveram de mudar porque o pai estava desempregado e o aluguel no novo prédio era mais barato. O pai e a mãe passavam o dia inteiro gritando um com o outro, o eco de suas vozes reduzia as paredes da casa, dava a impressão de mais gente no espaço já acanhado. Mas isso ainda não era o que mais incomodava Luciano. O que realmente o aborrecia era a perda da janela da casa em que morava antes, de onde podia ver um bom pedaço da cidade um pouco mais abaixo do morro, e à noite tudo parecia um tapete de lâmpadas estendido na frente da vidraça, só para ele, como enfeites nas árvores de Natal que via nas vitrines do Centro. Agora, o quarto que dividia com os irmãos dava para uma parede suja e fuliginosa, estriada de rachaduras que se espalhavam como veias podres na pele de concreto.
Foi por isso que ele começou a fazer aquela coisa da área de serviço. A única chance de ver um pouco do céu lá fora antes de dormir era levar uma banqueta para a área e espiar pelas frestas da basculante a movimentação do outro lado da rua estreita, em que havia um prédio menor, de três andares, que não tapava completamente a vista. Mas a mãe usava a área para lavar roupa para fora durante o dia, e por isso só restavam a ele as noites ocultas, um segredo que, contra todos os prognósticos, vinha conseguindo manter só para si. De madrugada, saía sorrateiro da cama – era fácil, dormia na de baixo. Forcejava levando uma banqueta até a área, tentando não fazer barulho, e essa parte era difícil. Ficava olhando pela janela por boa parte da madrugada, e, embora ali não houvesse as antigas luzes da cidade, havia ruídos de carros passando em baixa velocidade na rua pedregosa, e ele acompanhava um por um, tentando adivinhar a cor do automóvel no escuro – dois postes de luz estavam quebrados e não se via muita coisa na rua.
Quando cansava de ficar observando o movimento preguiçoso dos automóveis, Luciano se punha a olhar o edifício em frente, o prédio velho com janelas gradeadas. Em algumas delas, havia buracos no vidro remendados precariamente com recortes de papelão ou sacolas plásticas de supermercado. Menos a que ficava no último andar, à direita. Ali nunca se via movimento, mas o vidro estava inteiro, tanto que refletia de vez em quando a luz mais alta de algum farol. Luciano ficava um longo tempo imóvel, perdido no exame minucioso do outro lado da rua até que o sono vinha. Daí, saía levando a banqueta de volta para seu lugar na cozinha e, após acomodá-la o mais silenciosamente que podia, voltava para a cama pisando devagarinho, dormindo sem sonhar até que a mãe o acordasse para ir ao colégio.
Uma noite, a janela da frente, a do terceiro andar, estava com a luz acesa – pela primeira vez desde que haviam se mudado. Curioso, Luciano esfregou os olhos para tentar ver melhor o interior do aposento. Divisou uma sombra cruzando rapidamente o quadrado da janela e sumir de vista. Menos de um minuto depois, um menino surgiu por trás da vidraça, pele em um tom ameno de marrom, os cabelos anelados muito crespos de uma cor de ferrugem queimada. Era magro, usava uma camiseta branca de gola desbeiçada e um calção preto folgado. Parecia ser da sua idade. O garoto do outro lado da rua mexeu no vidro e tentou abrir a janela por um bom tempo, o esforço talhando esgares em seu rosto. Depois, dirigiu-se a uma porta que havia no fundo do quarto e começou a socar a madeira. Passou-se um bom tempo até que a porta se abriu, e o menino caiu pra trás, saindo do quadro da janela e sumindo de vista. Um homem corpulento entrou, e Luciano não podia ver seu rosto de onde estava, o fim da vidraça encobria-o do pescoço para cima. O homem usava uma jaqueta preta e parecia gordo, mole e imenso. Trazia as mãos dentro dos bolsos canguru do casaco. Ficou parado na porta enquanto o menino de calção entrava em quadro outra vez na janela e começava a socar o vidro e a gritar tão forte e tão alto que Luciano parecia estar ouvindo a voz desesperada dentro de sua cabeça. O homem na janela deu um passo para frente, mas Luciano não viu o rosto, e sim uma coisa que parecia escura e gosmenta mesmo debaixo do capuz que escondia os olhos. O homem retirou as mãos do bolso – contrariando a corpulência do personagem, eram finas e magras, dedos esqueléticos dois quais alguma coisa pastosa parecia estar pingando. Uma daquelas mãos imprecisas se ergueu até um ponto escuro na parede, e o garoto continuava gritando quando a luz do apartamento se apagou.
Luciano saiu correndo da área de serviço e se jogou em cima da cama da mãe, gritando desesperado que alguém tinha de descer e bater no prédio da outra rua, porque havia um guri da idade dele em perigo. E o pai acordou e puxou-o pelos cabelos e o atirou contra o assoalho, porque ele deveria estar dormindo e aquilo não era jeito de pular na cama com a mãe naquele estado, ele poderia ter caído por cima da barriga dela. E que história era aquela? Que fosse dormir e ficasse quieto, e ele não foi, se ajoelhou no chão e gritava a ponto de rebentar o peito, e acordou os irmãos menores com tanto choro, e de seu quarto os manos espiavam pela guarda da cama o berreiro que ele fazia na sala, mesmo com o pai irritado e enchendo-o de tapas nas costas e na cabeça.
E Luciano tanto chorou e gritou e esbravejou que o pai, bufando, foi até a área de serviço e espiou a janela da frente, no terceiro andar. E ficou ainda mais irritado ao ver a luz apagada, e a atmosfera de silêncio antigo do apartamento vizinho. E Luciano precisou gastar mais tempo, aflito, para explicar que a coisa tinha desligado a luz, e tentou convencer o pai a ir com ele do outro lado da rua para bater na porta do edifício e procurar o zelador. O pai não queria ir, estava cansado, tinha sono, a rua de trás era escura, perigosa, toda hora estavam assaltando gente, que maluquice seria bater na casa dos outros tão tarde, aquilo era falta de laço e ele ia consertar, prometeu, e nesse momento a mãe tocou o ombro do pai e disse, de um jeito cansado e ao mesmo tempo manso, que Luciano podia realmente ter visto alguma coisa, e que talvez ele, o pai, devesse ir até o zelador ou o síndico do prédio da frente e avisar, porque então a coisa passaria a ser problema deles lá e todo mundo poderia voltar a dormir naquela casa. E o pai vestiu uma calça de abrigo e uma camiseta e saiu bufando.
– Tá, eu vou, mas esse guri inventor de moda vem comigo, não vou ser só eu que vou lá passar vergonha, ele vai comigo pra dizer direito o que ele acha que viu, assim aprende a não contar história a essa hora da madrugada.
Os dois saíram do condomínio, contornaram o terreno e atravessaram a rua, o pai olhando para os lados, em uma paranoia experiente de assaltos. No quadro da campainha, um botão indicava “zelador” e o pai apertou com força, de cara feia. Passados alguns minutos, alguém falou no interfone com uma voz arrastada.
– Quem é?
– O senhor me desculpe a hora, mas houve alguma complicação aí no seu prédio que precise de ajuda?
– Do que o senhor está falando, moço?
– É que a gente mora aí nos blocos da frente, e o meu filho, que tá aqui comigo, disse que viu uma briga no terceiro andar.
– Não era uma briga, pai – interrompeu Luciano –, era um menino, e tinha uma coisa, parecia gente mas era uma coisa…
– Calaboca, guri diabo, antes que eu te meta a mão.
O interfone chiou sem resposta por algum tempo até que a voz respondeu.
– O senhor disse em que andar?.
– No terceiro, na janela essa última aqui, bem da direita.
Novo chiado do interfone por um longo tempo sem que voz alguma respondesse.
– É o 31. Mas deve ter sido engano, moço. Esse apartamento tá vazio há dois anos. Ninguém tá morando ali, não tem nem água nem luz ligada.
Ao ouvir a explicação do zelador, Luciano entrou em pânico.
– Não pode, pai, então alguém tá usando ele pra alguma coisa, eu vi o menino na luz acesa, e a coisa entrou no apartamento.
Incomodado, o pai reforçou a pergunta.
– O senhor tem certeza?
– Claro que sim, amigo, eu trabalho aqui há cinco anos. E acho melhor parar essa prosa por aqui porque estou achando esse seu papo muito suspeito. Ou o senhor vai embora agora ou eu chamo a polícia.
O interfone chiou uma última vez até que um som seco e brusco desligou o mecanismo. Luciano olhou para o pai pronto para insistir, mas o olhar que recebeu de volta foi tão furioso e impaciente que teve medo de apanhar e ficou quieto. Voltaram para casa em silêncio e, ao entrarem, ele ainda tentou correr para o quarto para se atirar na cama e ficar ali, quieto, sem falar com ninguém, mas o pai o agarrou pelo pulso e o puxou para perto, enquanto a mão pesada descia vários tapas no rosto e nas costas.
– Isso é pra tu aprender a não ser mentiroso, e agora vai pra cama e eu não quero ouvir um só pio de ti, ouviu? Se eu escutar um soluço que seja eu vou ali para te moer de pancada, guri. Tá me ouvindo? Tá me ouvindo? E para de chorar, tu não é homem? É homem pra inventar mentira, é homem pra apanhar quieto, nulidade.
Luciano obedeceu. Encolhido na cama, abraçava os joelhos. O rosto ardia, quente como se com febre. Fungava baixinho enquanto as lágrimas desciam para o colchão. Passou-se um bom tempo até que ouviu no quarto do lado o ronco de mecanismo emperrado que denunciava o sono do pai. Poderia chorar um pouco mais alto, agora, mas ao chegar a essa conclusão percebeu que já não tinha mais vontade de chorar. O que não conseguia era conciliar o sono. A visão do garoto socando a janela se intrometia de tal forma em seus pensamentos que, por um instante, teve a ilusão de que já estava dormindo, e aquela repetição incessante não passava de um pesadelo com prazo para se esboroar assim que seus sentidos voltassem à consciência. Tremendo as pernas finas como juncos ao vento, levantou-se, sabendo que com aquele gesto procurava encrenca.
As costas doíam quando se mexia. Ele não ligou, só conseguia pensar em girar a chave com todo o cuidado, não podia fazer barulho. Quando abriu a porta, quase morreu de medo de que o rangido acordasse alguém na casa, mas o único ruído que ouviu foi o rugir persistente do pai em seus roncos de desfalecido. Pôde descer e sair, e cruzar o corredor dos blocos, e dar a volta na quadra, e quando percebeu estava na frente do interfone do prédio vizinho. Quando chegou, não sabia o que fazer. Tinha certeza de que o zelador só diria o mesmo que já tinha dito, e pior, talvez descesse e o obrigasse a dizer onde morava, ou chamasse a polícia, e aí o pai, alertado de sua fuga, ia cumprir a promessa e bater nele até sangrar. A mãe vivia dizendo que o pai não era homem de honrar a própria palavra, mas Luciano sabia que isso era exagero, e que as juras violentas seu pai tinha prazer em cumprir. Sem saber bem o que estava fazendo, decidiu esticar-se na ponta dos pés e apertar o botão bem no alto do painel do interfone, o do apartamento 31. Esperou por um bom tempo sem que nada acontecesse, e já se preparava para ir embora quando ouviu um zumbido que vinha da porta.
Encostou a mão na grade e ela se abriu, e atrás dela havia um corredor comprido, iluminado por uma luz fraca que jogava manchas de um marrom doente sobre as paredes cobertas de azulejos esverdeados. Ao fundo, uma escada, e ele a alcançou devagar e subiu os degraus segurando firme no corrimão e olhando fixo para baixo, para não tropeçar. Quando chegou ao terceiro andar, havia uma porta aberta no outro extremo do corredor, e uma luz mais forte saía dela. Ele teve medo, e quase correu de volta para o pai. Mas sabia que o pai não acreditaria nele, e por isso caminhou sozinho até a réstia de luz. Passou pelo 34, pelo 33, pelo 32 e não precisava mais olhar para a porta para saber que o feixe iluminado só poderia vir do 31, um apartamento ainda menor do que aquele que dividia com a família. Era uma única peça, o piso de madeira estava gasto, a pintura nas paredes reduzida a camadas diferentes de tintas umas sobre as outras, cicatrizes de PVC. De uma lâmpada que pendia do teto por um fio verde, remendado com fita isolante, vinha uma luz triste que insultava o ambiente. Não parecia haver ninguém. Olhou da porta para a janela na parede ao fundo do quarto e só aí percebeu que aquele era o ponto de vista imediatamente contrário ao das suas noites secretas na área de serviço. Com esse pensamento na cabeça, não resistiu à vontade de espiar sua própria rotina pelo ângulo inverso e entrou.
Quando estava no meio do caminho, ouviu a porta bater. Voltou até ela e tentou abri-la, sem sucesso. O trinco mexia, mas a porta não. Chutou uma ou duas vezes embaixo, como tinha visto o pai fazer na outra casa quando a fechadura dava problema. Também não funcionou.
Correu até a janela e, ao ver seu reflexo no vidro, os olhos grandes e esbugalhados debaixo da cabeleira desgrenhada de um vermelho queimado, foi invadido por um terror gelado como uma enxurrada no inverno. Tomado de um pânico repentino, tateou a janela, procurando a tranca. Não se mexia. Levou as mãos aos puxadores e tentou fazer a vidraça subir, fez toda força que podia, mas nada aconteceu. Só aí passou a pensar um pouco melhor e percebeu que mexer na janela era inútil com as grades do lado de fora, e correu outra vez para a porta. Ao mexer no trinco e perceber que ela ainda estava trancada, começou a socar a madeira com toda a energia que ainda tinha, mas tudo o que conseguiu foi machucar os punhos.
Até que o trinco se moveu, e, em vez de se alegrar com aquilo, foi tomado pela consciência de que precisava se afastar, e quando sentiu o movimento vagaroso da porta em sua direção se atirou para trás, caindo de costas sobre o piso. Quando olhou de novo para a porta, notou que vulto imenso sob o umbral e não teve coragem de olhar. Em vez disso, virou-se e se arrastou desesperado em direção à janela. Ouviu a madeira ranger às suas costas enquanto se erguia, e começou a socar a vidraça. No reflexo do vidro, algo se mexia para os lados da porta, mas ele continuava batendo, sem olhar para trás e tentando concentrar-se ao máximo no que via além do vidro, a janela de seu prédio, a área onde estivera sentado hoje mesmo, parecia fazer tanto. Chorava, e talvez por isso teve a impressão absurda de que um vulto se mexia por trás da basculante na janela do apartamento do outro lado da rua, como se olhasse para ele.
Começou a urrar, as lágrimas molhando o rosto, o nariz escorrendo, as pupilas ardendo em fogo. E tudo o que conseguia sentir era tristeza, porque deduziu, em um momento de lucidez dolorosa bem além de sua pouca idade, que ninguém, nem ele mesmo, estava ouvindo seus gritos.
E aí a luz apagou.
Foto da Capa: Josh Nuttall / Unsplash