” Quando a realidade não se encaixa na lenda, publique a lenda “
John Ford
Num filme de 1976, que se passa no fim do século XIX (From noon till three ou A dama e o proscrito, na versão brasileira), o diretor Frank Gilroy descreve as consequências da alienação simbólica, algo que acontece entre nós na vida pública e pessoal cotidianamente.
Resumo: um fugitivo de um assalto a um banco (Graham Dorsey) se abriga na casa de uma linda mulher (Amanda Starbuck) e ali fica durante três horas tentado seduzi-la. Amanda resiste às tentativas de Graham o qual, como estratégia, informa ser impotente, esperando a compaixão de Amanda. O engano funciona e ambos fazem amor por três vezes quando Amanda observa uma estranha tatuagem no pênis do visitante. Depois conversam longamente e inclusive dançam ao som da caixa de música de Amanda, com Graham vestindo um velho traje do ex-esposo dela.
Em seguida, Amanda é avisada por um vizinho do assalto ao banco da cidade e estimula Graham a ajudar os policiais, mas ele é reconhecido e perseguido. Na fuga, se encontra com um dentista charlatão ambulante, rouba o seu cavalo e troca de roupas com ele. O dentista, mais tarde, é confundido com Graham e é morto por policiais. O velho xerife da vila, reconhecendo a roupa do marido de Amanda, leva o cadáver para ela, que, não tendo visto o rosto do morto, sofre um desmaio. Acontece que, pelo que fez ao dentista, Graham é condenado e preso.
Amanda foi inicialmente desprezada pelos habitantes da vila, mas por conta do seu apaixonado e sensível relato de seu amor por Graham, com o tempo não só é perdoada como gera grande fascinação pela história a qual se transforma numa lenda dando assunto para um livro, novelas publicadas em séries pelos jornais, encenada como uma peça de teatro e inclusive fez sucesso em canções populares. E exatamente pela história se tornar uma lenda é que se popularizou.
Assim, a lenda de Amanda e Graham ficou maior do que a realidade, o livro virou um best-seller e Amanda se tornou muito rica.
Graham leu o livro e, quando é libertado, não só participa de um tour de curiosos à casa de Amanda como resolve se deixar reconhecer, mas ela não o identifica. Diz que há pouca fantasia no que escreveu e que toda a verdade está relatada no livro. Somente quando Graham lhe mostra o que não está no livro (seu pênis) Amanda o reconhece e, em vez de ficar alegre, se assusta com o relato minucioso e fantasioso que publicou sobre o antigo encontro amoroso, porque se é propagada a notícia de que Graham está vivo, será o fim da lenda e o fim de Amanda que vivia na e da lenda e não da realidade. E isto ela não pode suportar, então saca um revólver e o aponta para Graham, mas subitamente vira o cano da arma para si e se mata.
Pode-se sempre viver com a lenda, difícil quase impossível é viver-se com a realidade. A arte e suas articulações com as lendas e com a irrealidade pode nos ajudar na difícil tarefa de viver.
E, enfim, John Ford estava certo.
Franklin Cunha é médico e membro da Academia Rio-Grandense de Letras.
Foto da Capa: Reprodução
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